A BARBIE (RUBEM ALVES)
Fiquei comovido quando li que foram encontradas bonecas
em túmulos de crianças no Egito, na Grécia e em Roma. Pude imaginar o que os pais,
deveriam estar sentindo ao colocar aquele brinquedo junto ao corpo da filha
morta. Eles o faziam para que ela não partisse sozinha, para que ela não tivesse
medo...
De fato, uma criança abraçada a uma boneca é uma
criança sem medo, uma criança feliz. Os meninos, proibidos de ter bonecas, se
abraçam aos seus ursinhos de pelúcia. E nós, adultos, proibidos de ter bonecas
e de ter ursinhos de pelúcia, nos abraçamos ao travesseiro... Os objetos são
diferentes, mas o seu sentido é o mesmo: o desejo de aconchego e de ternura.
Por isso eu acho que o senhor e a senhora fizeram
muito bem ao dar uma boneca de presente para a sua filhinha.
Com uma exceção, é claro: se a boneca não foi a Barbie.
Porque a Barbie não é uma boneca. Falta a ela o poder que têm as outras
bonecas, bebezinhos, de afugentar o medo e provocar sentimentos maternais de
ternura. Não posso imaginar uma menina dormindo abraçada à sua Barbie. Nenhum
pai colocaria a Barbie no túmulo da filha morta.
A Barbie não é boneca. É uma bruxa.
Posso bem imaginar o espanto nos seus olhos. Eu
imagino também os seus pensamentos: O Rubem perdeu o juízo. A Barbie é uma
boneca de plástico, não mexe, não pensa, não fala. E agora ele diz que ela é
uma bruxa...
Que as bonecas, ao contrário das aparências, têm uma
vida própria, eu aprendi no 2º. ano primário. Minha professora me deu um livro
sobre bonecas e bonecos: enquanto a gente estava acordado, elas ficavam
deitadinhas, olhinhos fechados, fingindo que dormiam. Mas bastava que os vivos
dormissem para que elas acordassem e se pusessem a falar coisas.
As bonecas foram os primeiros brinquedos inventados
pelos homens.
E foram também os primeiros instrumentos de magia
negra. Um alfinete, aplicado no lugar certo de uma boneca - assim afirmam os
entendidos - tem o poder de matar a pessoa que se parece com ela.
Pois eu digo que a Barbie é uma bruxa. Bruxa enfeitiça.
Enfeitiçada, a pessoa deixa de ter pensamentos próprios. Só pensa o que a bruxa
manda. A pessoa enfeitiçada fica possuída pelos pensamentos da feiticeira e só
pensa e faz aquilo que ela manda.
Se falo é porque vi, com esses olhos que a terra há
de comer. Basta que as crianças comecem a brincar com a Barbie, para que fiquem
diferentes. O pai manda, a mãe manda, a criança faz birra e não obedece. Não é
assim com a Barbie. Basta que a Barbie mande para que elas obedeçam.
De novo você vai me contestar, dizendo que a Barbie
não fala e não tem vontade. Por isso não pode nem dar ordens e nem ser obedecida.
Errado. O fantástico é que ela, sem falar e sem ter
vontade, tenha mais poder sobre a alma da criança que os pais. Quem me revelou
isso foi o futurólogo Alvin Toffler, no seu livro O Choque do Futuro, que li em
1971. O capítulo A Sociedade do Joga-Fora começa com a Barbie. Nascida em 1959,
em 1970 mais de 12 milhões já tinham sido vendidas. Um negócio da China. E por
quê? Porque a Barbie, diferente das bonecas antigas, bebês que se contentam com
uma chupeta e um chocalho, tem uma voracidade insaciável. A Barbie é uma boneca
que nunca está contente: ela sempre pede mais. E essa é a grande lição que ela
ensina às crianças: Compra, por favor!
Para se comprar há as roupas da Barbie, a banheira
da Barbie, o secador de cabelo, o jogo de beleza, o guarda-roupa, a cama, a
cozinha, o jogo de sala de estar, o carro, o jipe, a piscina, o chalé de praia,
o cavalo e os maridos, que podem ser escolhidos e alternados entre o loiro e o
moreno etc. etc.
A Barbie está sempre incompleta. Portanto, com ela
vem sempre uma pitada de infelicidade. Aliás, essa é a regra fundamental da
sociedade consumista: é preciso que as pessoas se sintam infelizes com o que
têm, para que trabalhem e comprem o que não têm. A Barbie tem esse poder: quem
a tem está sempre infeliz porque há sempre algo que não se tem, ainda. E os
engenheiros da inveja, a serviço das fábricas, se encarregam de estar sempre
produzindo esse novo objeto que ainda não foi comprado. Mas é inútil comprar. Porque
logo um outro será produzido. É a cenoura na frente do burro... Ela nunca será
comida.
Quem dá uma Barbie para uma criança põe a criança
numa arapuca sem saída. Porque, ao ter uma Barbie, ela ingressa no Clube das
Meninas que têm Barbie. E as conversas, nesse clube, são assim: Eu tenho o
chalé de praia da Barbie. Você não tem. Ao que a outra retruca: Não tenho o
chalé, mas tenho o marido loiro da Barbie, que você não tem.
Essa é a primeira lição que a inofensiva boneca de
plástico ensina. Ensina a horrível fala do eu tenho, você não tem. A maldição
das comparações. A maldição da inveja. Você deve conhecer alguns adultos que
fazem esse jogo. Haverá coisa mais chata, mais burra, mais mesquinha? Ao dar
uma Barbie de presente é preciso que você saiba que a menina inevitavelmente
aprenderá essa fala.
Isso feito, uma segunda fala entra inevitavelmente
em cena, impulsionada pelas ilusões da inveja. A menininha pensa: Estou infeliz
porque não tenho. Se eu tiver, serei feliz. O jeito de se ter é comprar.
- Papai...
- Que é, minha filha?
- Compra o chalé de praia da Barbie? Eu quero tanto...
Filha na arapuca. Pai na arapuca.
Mas há uma saída. E, para ela, procuro sócios. Vamos
começar a produzir o próximo e definitivo complemento para a bruxa de plástico:
urnas funerárias para a Barbie. Por vezes o feitiço só se quebra com o
assassinato da feiticeira - por bonitinha que ela seja...
(ALVES, Rubem. A Barbie. In: Teologia do cotidiano. São Paulo, Olhos d'Água, 1994. pp. 21-25)
É claro que esse texto é para quem prefere poesia. Mas para quem prefere dados concretos, seguem alguns bem interessantes.
Um comentário:
É Stella. É bem assim mesmo. Mas ae, não tem um filme de terror com essa temática? E não é o brinquedo assassino. É um com uma boneca bem parecida com a Barbie.
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