ALEGRIA (RUBEM ALVES)
Não, eu não
quero prazer! Eu quero alegria! Era isso o que dizia uma das amantes de
Tomás, o médico de A Insustentável
Leveza do Ser. E Tomás ficava perdido porque prazer ele sabia dar, é coisa
de receita fácil, mora no corpo. Mas alegria é coisa mais sutil, mora na alma,
no lugar das fantasias e da saudade.
Há um jeito fácil de saber se o que se sente é prazer
ou alegria. Basta prestar atenção no corpo. Se ele for ficando cada vez mais
pesado, é prazer. Se for ficando cada vez mais leve, é alegria.
Todo mundo já experimentou isso num churrasco ou
numa feijoada, a comida é gostosa, agrada boca e nariz, boca sempre cheia,
dentes incansáveis, mais uma cervejinha e, aos poucos, a gente vai ficando
desanimado, estufado, incomodado, não aguenta mais. Pena que o costume romano
de ter um vomitório em cada refeitório tenha sido esquecido, quem sabe algum
arquiteto imaginoso vai convencer um dono de restaurante a introduzir tal progresso
no seu estabelecimento.
O prazer é sempre assim - ao final o corpo diz: Chega! Não aguento mais! E isso é
verdade também para as coisas do amor carnal. No ônibus a mocinha incansavelmente
se dedicava a abraçar, acariciar, apalpar, beijar, mordiscar o namorado,
coitadinha, pensando que assim os desejos dele seriam acesos de forma incontrolável
e ele nunca mais a abandonaria. Fiquei com dó dela, por não entender das coisas
do prazer, e dele, pois de forma alguma gostaria de estar na sua pele. O final,
que não presenciei, era inevitável: ela seria mandada embora. E era justamente
isso que o Tomás fazia com todas as suas amantes: não deixava que nenhuma delas
dormisse em sua casa. Terminada a orgia do amor, tratava de chamar um táxi e
despachá-las para suas casas, porque sua maquineta de prazer não era realejo
que fica tocando enquanto se gira a manivela. Há manivelas que, depois de
algumas voltas, se recusam a girar de novo, ficam emperradas. Assim é a máquina
do amor - tanto nos homens quanto nas mulheres.
Com a alegria é diferente. O corpo vai ficando cada
vez mais leve; quanto mais come, com mais fome fica.
Você vai dizer que não pode ser, que não existe jeito
de comer sem se encher. Pois eu digo que tudo tem a ver com a fome que se tem e
com a comida que se come.
Foi justamente isso que pôs meu realejo de pensamento
a funcionar. E esse realejo, posso assegurar, não precisa de manivela para
produzir música, é motocontínuo, movido por alegria, pois pensar é uma alegria,
brincar com as ideias, como se fosse criança brincando: criança não se cansa,
só para de brincar por imposição dos superiores, pois brinquedo, além de dar
prazer, dá alegria também. E é por isso que mesmo quando o corpo é obrigado a
parar, a cabeça desobedece e continua a brincar. O que não é o caso do prazer,
pois quem seria louco de continuar a comer a feijoada no pensamento, se o
estômago não aguenta mais? Barriga que se encheu gostaria mesmo é de se
esquecer do que comeu...
Uma outra diferença é que o prazer, para acontecer,
precisa que a coisa exista. Ele precisa da feijoada, do churrasco, da boca que
dá o beijo. Já a alegria, para haver, não precisa que a coisa exista. O que me
faz pensar que ela deve ser mais divina que o prazer pois, a se acreditar no
Riobaldo, Deus é aquele que é, mesmo
quando não existe.
A alegria é coisa de criança. Pois criança se alegra
com qualquer coisa, bolinha de gude, pião, casa de toquinho, torre de dominó,
panelinha de fazer comidinha, coisa do mundo de faz-de-contas. E percebi que
também sou assim. Claro que meu pensamento sabe trabalhar as coisas
importantes. Mas quando ele está livre e não lhe dou uma tarefa a cumprir, ele
anda vagabundo como criança, do jeitinho do Menino Jesus como conta Alberto
Caeiro, brincando com ideias sem importância, como os riachinhos, as
cachoeiras, as saracuras, os pintassilgos, os pica-paus, as araucárias, um
inútil monjolo velho, um forninho de barro que ainda não fiz, as galinhas
d'angola que ainda não estão lá, uma casinha que vou fazer para a minha neta,
tudo lá nos ermos da Mantiqueira, mesmo quando lá não estou, só na imaginação,
que é o lugar onde a alegria vem, me faz virar menino e começo a voar como o
Peter Pan.
Pra quem não sabe, é bom prestar atenção. Assim
também é o amor. Para alguns, a dita pessoa amada é só objeto de prazer,
feijoada, comeu, gostou, ficou cheio, enjoou... Para outros a pessoa amada é
alegria leve do pensamento, que brinca com ela mesmo quando está longe. Esses
estarão sempre com fome...
3/7/93
(ALVES, Rubem. A Barbie. In:Teologia
do cotidiano. São Paulo, Olhos d'Água, 1994. pp. 26-29)
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