terça-feira, 22 de julho de 2014

UMA SEMANA COM RUBEM ALVES - SEGUNDO DIA: CONVERSAS COM QUEM GOSTA DE ENSINAR

Escolhi alguns trechos do primeiro capítulo do livro: Conversas Com Quem Gosta de Ensinar, intitulado Sobre Jequitibás e Eucaliptos - Amar, que mais me emocionaram quando o li, lá pelos idos do final da década de 80. Nesse tempo, formada em Administração e trabalhando na área por imposição familiar e também da vida que me exigia trabalhar para ajudar no sustento da casa, não era feliz. No ano de 1989, finalmente eu sabia que iria realizar meu sonho: terminar meu curso de Letras. E eu estava determinada a dar aulas na rede pública de ensino. 
Nessa época, havia muitos debates, mesmo em faculdades particulares como a que eu frequentava, em que se pensava a profissão de professor. Saindo da ditadura militar, todos nós nos questionávamos: E agora? O que fazer para tentar reverter o quadro de trevas que se havia instalado na educação brasileira?
Não me lembro como esse livro parou em minhas mãos. Mas foi ele que me deu as respostas. As minhas respostas, aquelas que calaram fundo na minha alma.

Sobre Jequitibás e Eucaliptos - Amar (Rubem Alves)

Foi o tema que me deram, “a formação do educador”, que me fez passar de tropeiros a caixeiros. Todas, profissões extintas ou em extinção.
Educadores, onde estarão? Em que covas terão se escondido? Professores, há aos milhares. Mas professor é profissão, não é algo que se define por dentro, por amor.
Educador, ao contrário, não é profissão: é vocação. E toda vocação nasce de um grande amor, de uma grande esperança.
Profissões e vocações são como plantas. Vicejam e florescem em nichos ecológicos, naquele conjunto precário de situações que as tornam possíveis e - quem sabe? – necessárias. Destruído esse habitat, a vida vai se encolhendo, murchando, fica triste, mirra, entra para o fundo da terra, até sumir.
Com o advento da indústria, como poderia o artesão sobreviver? Foi transformado em operário de segunda classe, até morrer de desgosto e saudade. O mesmo com os tropeiros, que dependiam das trilhas estreitas e das solidões, que morreram quando o asfalto e o automóvel chegaram. Destino igualmente triste teve o boticário, sem recursos para sobreviver num mundo de remédios prontos. Foi devorado no banquete antropológico das multinacionais. (...)
E o educador? Que terá acontecido com ele? Existirá ainda o nicho ecológico que torna possível a sua existência? Resta-lhe algum espaço? Será que alguém lhe concede a palavra ou lhe dá ouvidos? Merecerá sobreviver? Tem alguma função social ou econômica a desempenhar?
Uma vez cortada a floresta virgem, tudo muda. É bem verdade que é possível plantar eucaliptos, essa raça sem-vergonha que cresce depressa, para substituir as velhas árvores seculares que ninguém viu nascer nem plantou.
Para certos gostos, fica até mais bonito: todos enfileirados, em permanente posição de sentido, preparados para o corte. E para o lucro. Acima de tudo, vão-se os mistérios, as sombras não penetradas e desconhecidas, os silêncios, os lugares ainda não visitados. O espaço se racionaliza sob a exigência da organização. Os ventos não mais serão cavalgados por espíritos misteriosos, porque todos eles só falarão de cifras, financiamentos e negócios.
Que me entendam a analogia.
Pode ser que educadores sejam confundidos com professores, da mesma forma como se pode dizer: jequitibá e eucalipto, não é tudo árvore, madeira? No final, não dá tudo no mesmo?
Não, não dá tudo no mesmo, porque cada árvore é a revelação de um habitat, cada uma delas tem cidadania num mundo específico. A primeira, no mundo do mistério, a segunda, no mundo da organização, das instituições, das finanças. Há árvores que têm uma personalidade, e os antigos acreditavam mesmo que possuíam uma alma. É aquela árvore, diferente de todas, que sentiu coisas que ninguém mais sentiu, Há outras que são absolutamente idênticas umas às outras, que podem ser substituídas com rapidez e sem problemas.
Eu diria que os educadores são como as velhas árvores. Possuem uma frase, um nome, uma “estória” a ser contada. Habitam um mundo em que o que vale é a relação que os liga aos alunos, sendo que cada aluno é uma “entidade” sui generis, portador de um nome, também de uma “estória”, sofrendo tristezas e alimentando esperanças. E a educação é algo para acontecer neste espaço invisível e denso, que se estabelece a dois. Espaço artesanal.
Mas professores são habitantes de um mundo diferente, onde o “educador” pouco importa, pois o que interessa é um “crédito” cultural que o aluno adquire numa disciplina identificada por uma sigla, sendo que, para fins institucionais, nenhuma diferença faz aquele que a ministra. Por isto mesmo professores são entidades “descartáveis”, da mesma forma como há canetas descartáveis, coadores de café descartáveis, copinhos plásticos de café descartáveis.
De educadores para professores realizamos o salto de pessoa para funções.
É doloroso, mas é necessário reconhecer que o mundo mudou. As florestas foram abatidas. Em seu lugar, eucaliptos. (...)
--------------------------------------------------------------------------------
Articula-se aqui um mundo a partir da interioridade. Com o advento do utilitarismo, entretanto, tudo se alterou. A pessoa passou a ser definida pela sua produção: a identidade é engolida pela função. E isto se tomou tão arraigado que, quando alguém nos pergunta o que somos, respondemos inevitavelmente dizendo o que fazemos. Com esta revolução instaurou-se a possibilidade de se gerenciar e administrar a personalidade, pois que aquilo que se faz e se produz, a função, é passível de medição, controle, racionalização. A pessoa praticamente desaparece, reduzindo-se a um ponto imaginário em que várias funções são amarradas.
E isto que eu quero dizer ao afirmar que o nicho ecológico mudou. O educador, pelo menos o ideal que minha imaginação constrói, habita um mundo em que a interioridade faz uma diferença, em que as pessoas se definem por suas visões, paixões, esperanças e horizontes utópicos. O professor, ao contrário, é funcionário de um mundo dominado pelo Estado e pelas empresas. É uma entidade gerenciada, administrada segundo a sua excelência funcional, excelência esta que é sempre julgada a partir dos interesses do sistema. Frequentemente o educador é mau funcionário, porque o ritmo do mundo do educador não segue o ritmo do mundo da instituição. (...)
--------------------------------------------------------------------------------------
O fato é que não dispomos de critérios para avaliar esta coisa imponderável a que se dá o nome de educação. E é aqui que se encontra o problema: se não dispomos sequer de critérios para pensar institucionalmente a educação, como pensar o educador? A formação do educador: não existirá aqui uma profunda contradição? Plantar carvalhos? Como, se já se decidiu que somente eucaliptos sobreviverão?
Plantar tâmaras, para colher frutos daqui a cem anos? Como, se já se decidiu que todos teremos de plantar abóboras, a serem colhidas daqui a seis meses?
O educador é um ausente. Nosso espaço funcional, gerenciado, torna possível falar sobre funcionários definidos pela instituição. Mas ele não permite que se fale sobre coisa alguma que se move num espaço definido pela liberdade. O educador tem, assim, o estatuto de um conceito utópico, de existência prática proibida e, por isto mesmo, existência teórica impossível. E, é por isto que as ciências silenciaram sobre ele. (...)
No entanto, continuamos a falar sobre o educador, a nos perguntar sobre sua formação - como se ele fosse uma entidade entre outras. Não é curioso isto - que continuemos a falar assim, a despeito de todas as proibições? Proibição prática, proibição teórica... Curioso que esta fantasia continue a nos assombrar e a nos inspirar como visão, talvez, daquilo que poderíamos ser se não tivéssemos sido domesticados.
Aqui, talvez, uma ciência pouco ortodoxa possa vir em nosso auxílio, para nos ajudar a compreender este discurso sobre possibilidades ainda não realizadas, que só se articula pela mediação da imaginação e da fantasia. Discurso perigoso e amedrontador, que tem em uma de suas extremidades o louco e na outra o poeta. Na verdade, que tênues são os limites que os separam porque, cada um, ao seu modo, se recusa a falar sobre o real, preferindo antes anunciar o ausente. É evidente que o pensamento marcado pela objetividade bruta, e que se esgota nos objetos apresentados à sua inspeção, recuará com pavor e desprezo, pois ele tem o seu lugar nas opções que triunfaram e nos fatos que se impuseram, enquanto o discurso do imaginário explora o real do ponto de vista dc suas ausências, das possibilidades que fracassaram, não por serem menos belas, mas por serem mais fracas, mas que continuam presentes sob a forma de promessas, esperanças, fantasias, utopias... loucura.
“Aqui a palavra não é a expressão de uma coisa, mas antes da ausência desta coisa, palavra que faz com que as coisas desapareçam, impondo em nós o sentimento de uma ausência universal”. (Maurice Blanchot)
É a ciência pouco ortodoxa da psicanálise que nos informa que o discurso sobre as ausências, discursos dos sonhos, das esperanças, tem o seu lugar na interioridade de nós mesmos, explodindo, emergindo, irrompendo sem permissão, para invadir e embaraçar o mundo tranquilo, racional e estabelecido de nossas rotinas institucionais. Seria possível, então, compreender que a polaridade entre educadores e professores não instaura uma dicotomia entre duas classes de pessoas, umas inexistentes e utópicas, outras existentes e vulgares, mas antes uma dialética que nos racha a todos, pelo meio, porque todos somos educadores e professores, águias e carneiros, profetas e sacerdotes, reprimidos e repressores.
Não é por acidente, então, que os professores sejam aqueles que sonham com os educadores, e os funcionários tenham visões de liberdade, e os animais domésticos façam poemas e tenham loucuras sobre o selvagem que habita cada um deles. Não se trata de formar o educador, como se ele não existisse. Como se houvesse escolas capazes de gerá-lo, ou programas que pudessem trazê-lo à luz. Eucaliptos não se transformarão em jequitibás, a menos que em cada eucalipto haja um jequitibá adormecido. O que está em jogo não é uma técnica, um currículo, uma graduação ou pós-graduação.
Nenhuma instituição gera aqueles que tocarão as trombetas para que seus muros caiam.
O que está em jogo não é uma administração da vocação, como se os poetas, profetas, educadores, pudessem ser administrados.
Necessitamos de um ato mágico de exorcismo. Nas histórias de fadas é um ato de amor, um beijo, que acorda a Bela Adormecida de seu sono letárgico, ou o príncipe transformado em sapo.
Diz-nos Freud que a questão decisiva não é a compreensão intelectual, mas um ato de amor. São atos de amor e paixão que se encontram nos momentos fundadores de mundos, momentos em que se encontram revolucionários, os poetas, os profetas, os videntes. E depois, quando se esvai o ímpeto criador, quando as águas correntes se transformam primeiro em lagoas, depois em charcos, que se estabelece a gerência, a administração, a burocracia, a rotina, a racionalização, a racionalidade.
A questão não é gerenciar o educador. É necessário acordá-lo. E, para acordá-lo, uma experiência de amor é necessária. Já sei a pergunta que me aguarda: - E qual é a receita para a experiência de amor, de paixão? Como se administram tais coisas? Que programas se constroem?
Aí eu tenho de ficar em silêncio, porque não tenho resposta alguma.
Na verdade, quando nos propomos tais perguntas estamos, realmente, nos questionando: Por que não ficamos grávidos e grávidas com o educador? Por que não somos consumidos pela paixão, por mais irracional que ela seja?
Ah! Como a paixão é doce. Somente os apaixonados sabem viver e morrer. Somente os apaixonados, como D. Quixote, vislumbram batalhas e se entregam a elas. A paixão é o segredo do sentido da vida. E que outra questão mais importante poderá haver? Dizia Camus que o único problema filosófico realmente sério é "julgar-se a vida é digna ou não de ser vivida”.
------------------------------------------------------------------------------------------
Em Gabriela, Cravo e Canela há um momento em que a filha de um coronel diz à sua mãe que pretendia casar-se com um professor. Ao que a mãe retruca, numa clássica lição de realismo político: “E o que é um professor, na ordem das coisas? Que tem ensino a ver com poder? Como podem as palavras se comparar com as armas? Por acaso a linguagem já destruiu e já construiu mundos?”
Parece que o destino do educador se dependura na resposta a estas questões. Se fazemos a nossa aposta em que o mundo humano é regido por leis idênticas àquelas que movem o universo físico, se acreditamos que a sociedade tem o estatuto de coisa, se aceitamos que o futuro não passa por dentro do que pensamos e do que dizemos, em resumo, se não arriscamos tudo na confiança de que a palavra tem um poder criador, restamos então uma única opção: o silêncio. É muito revelador que Marx, para destruir os hegelianos de esquerda, que acreditavam que também as palavras entram na argamassa com que a sociedade é construída, o tivesse feito justamente com o auxílio de palavras: A ideologia alemã. Se a crítica deixa as coisas como estão, por que fazer a crítica da crítica? Se as palavras são vazias de poder, por que usar tantas palavras para discutir o poder? Não, o fato é que todos aqueles que ainda têm a ousadia de falar e escrever, acreditam, ainda que de forma tênue, que o seu falar faz uma diferença.
Isto é de crucial importância para o educador, e desta crença depende o seu sono e o seu acordar. Porque, com que instrumentos trabalha o educador? Com a palavra. O educador fala. Mesmo quando o seu trabalho inclui as mãos, como o mestre que ensina o aprendiz a moldar a argila, ou o cientista ensina o estudante a manejar o microscópio, todos os seus gestos são acompanhados de palavras. São as palavras que orientam as mãos e os olhos.
Vocês, que acompanharam o documentário Raízes Negras ou leram o livro, se lembrarão de que, quando Kunta Kinte foi vendido a um dono, um novo nome lhe foi dado. E isto não foi acidente. O primeiro ato de domínio exige que o dominado esqueça o seu nome, perca a memória do seu passado, não mais se lembre de sua dignidade e aceite os nomes que o senhor impõe. A perda da memória é um evento escravizador. É por isto mesmo que a mais antiga tradição filosófica do mundo ocidental afirma que o nosso destino depende de nossa capacidade e vontade de recuperar memórias perdidas. Na linha que vai de Platão a Freud, o evento libertador exige que sejamos capazes de dar nomes ao nosso passado. A lembrança é uma experiência transfiguradora e revolucionária. Tanto assim que Marcuse chega a se referir à função subversiva da memória. Por mais curioso e paradoxal, parece que o mais distante é aquilo que está mais próximo do nosso futuro.
E agora eu convidaria esta pessoa singular, que só tem nas mãos a palavra, a um ato de exorcismo e quebra de feitiço. É necessário lembrar, recuperar a memória dos momentos em que o mundo foi instaurado. Lá, quando a criança, com seus olhos virgens, olha para o todo amorfo e inominável ao seu redor, e a desordem gira em torno dela, até que a palavra lhe é dirigida, dando nomes, impondo ordem, fazendo nascer um mundo. “No princípio era a Palavra...” Não qualquer palavra, porque as palavras eficazes são aquelas que partem daqueles que são os outros significativos, aqueles que têm, com a criança, um destino comum, aqueles para quem a criança importa, porque ela será uma companheira numa mesma habitação, seja casa, seja vila, seja jornada... Jornadas também são habitações. E ali descobrimos que “cada pessoa que entra em contato com a criança é um professor que incessantemente lhe descreve o mundo, até o momento em que a criança é capaz de perceber o mundo tal como foi descrito” (Carlos Castañeda em Viagem a Ixtlan): professores que não sabem que são professores, sem créditos em didática nem conhecimento de psicologia. Só dispõem da palavra e do destino comum. E sem saber como, e sem ter nenhuma teoria sobre como é que as coisas acontecem, os mundos são criados.
“E o que é um professor, na ordem das coisas?”
Talvez que um professor seja um funcionário das instituições que gerenciam lagoas e charcos, especialista em reprodução, peça num aparelho ideológico de Estado. Um educador, ao contrário, é um fundador de mundos, mediador de esperanças, pastor de projetos.
Não sei como preparar o educador. Talvez que isto não seja nem necessário, nem possível... É necessário acordá-lo. E aí aprenderemos que educadores não se extinguiram como tropeiros e caixeiros. Porque, talvez, nem tropeiros nem caixeiros tenham desaparecido, mas permaneçam como memórias de um passado que está mais próximo do nosso futuro que o ontem. Basta que os chamemos do seu sono, por um ato de amor e coragem. E talvez, acordados, repetirão o milagre da instauração de novos mundos.


ALVES, Rubem. Sobre jequitibás e eucaliptos – amar. In: Conversas com quem gosta de ensinar. 23ed. São Paulo, Cortez, 1989. (pp. 11-30).






Nenhum comentário: