Em tempo de crianças que são como pequenos adultos, com a agenda cheia de atividades que servirão para quando ela crescer (pelo menos é nisso que os pais acreditam), e que vivem estressadas, é sempre bom lembrar que as crianças precisam brincar!
DA INUTILIDADE DA INFÂNCIA (RUBEM ALVES)
O pai orgulhoso e sólido olha para o filho
saudável e imagina o futuro.
- Que é que você vai ser quando crescer?
Pergunta inevitável, necessária, previdente, que ninguém
questiona.
- Ah! Quando eu crescer, acho que vou ser médico!
A profissão não importa muito, desde que ela pertença
ao rol dos rótulos respeitáveis que um pai gostaria de ver colados ao nome do
seu filho (e ao seu, obviamente)... Engenheiro. Diplomata, Advogado. Cientista.
Imagino um outro pai, diferente, que não pode fazer
perguntas sobre o futuro. Pai para quem o filho não é uma entidade que “vai ser
quando crescer”, mas que simplesmente é, por enquanto... É que ele sofre de leucemia
e, por isto mesmo, não vai ser nem médico, nem mecânico e nem ascensorista. Que
é que seu pai lhe diz? Penso que o pai, esquecido de todos “os futuros possíveis
e gloriosos” e dolorosamente consciente da presença física, corporal da
criança, se aproxima dela com toda a ternura e lhe diz: “Se tudo correr bem,
iremos ao jardim zoológico no próximo domingo...”
É, são duas maneiras de se pensar a vida de uma criança.
São duas maneiras de se pensar aquilo que fazemos com
uma criança.
Eu me lembro daquelas propagandas curtinhas que se
fizeram na televisão, por ocasião do ano da criança deficiente, para provar que
ainda havia alguma esperança, para dizer que alguma coisa estava sendo feita. E
apareciam lá, na tela, as crianças e adolescentes. Cada uma excepcional a seu
modo, desde síndrome de Down até cegueira, e aquilo que nós estávamos fazendo
com elas... Ensinando, com muito amor, muita paciência. E tudo ia bem até que
aparecia o ideólogo da educação dos excepcionais para explicar que, daquela
forma, esperava-se que as crianças viessem a ser úteis, socialmente. E fiquei a me perguntar se não havia uma pessoa
sequer que dissesse coisa diferente, que aquelas escolas não eram para
transformar cegos em fazedores de vassouras, nem para automatizar os
mongolóides para que aprendessem a pregar botões sem fazer confusão... Será que
é isto? Sou o que faço? Ali estavam crianças excepcionais, não-seres, que virariam
seres sociais e receberiam o reconhecimento público se, e somente se, fossem transformados
em meios de produção. Não encontrei nem
um só que dissesse:
Através desta coisa toda que estamos fazendo esperamos que as
crianças sejam felizes, dêem muitas risadas, descubram que a vida é boa... Mesmo
um excepcional pode ser feliz. Se uma borboleta, se um pardal e se uma ignorada
rãzinha podem encontrar alegria na vida, por que não estas crianças, só porque nasceram
um pouco diferentes...?
Voltamos ao pai e ao seu filhinho leucêmico.
Que temos a lhes dizer?
Que tudo está perdido? Que o seu filho é um não-ser
porque nunca chegará a ser útil socialmente? E ele nos responderá:
Mas não pode ser... Sabe? Ele dá risadas. Adora o jardim
zoológico. E está mesmo criando uns peixes num aquário. Você não imagina a
alegria que ele tem quando nascem os filhotinhos. De noite nós nos sentamos e
conversamos. Lemos estórias. Vemos figuras de arte, ouvimos música. Rezamos...
Você acha que tudo isto é inútil? Que tudo isto não faz uma pessoa? Que uma criança
não é, que ela só será depois que crescer, que ela só será depois de transformada
em meio de produção?
E eu me pergunto sobre a escola... Que crianças ela
toma pelas mãos...
Claro, se a coisa importante é a utilidade social
temos que começar reconhecendo que a criança é inútil, um trambolho. Como se
fosse uma pequena muda de repolho, bem pequena, que não serve nem para salada e
nem para ser recheada, mas que, se propriamente cuidada, acabará por se
transformar num gordo e suculento repolho e, quem sabe, um saboroso chucrute?
Então olharíamos para a criança não como quem olha para uma vida que é um fim
em si mesma, que tem direito ao hoje pelo hoje... Ora, a muda do repolho não é
um fim. É um meio. O agricultor ama, nas mudinhas de repolho, os caminhões de
cabeças gordas que ali se encontram escondidas e prometidas. Ou, mais
precisamente, os lucros que delas se obterá... utilidade social.
Reconheçamos: as crianças são inúteis...
Entre nós inutilidade é nome feio. Já houve tempo,
entretanto, em que ela era a marca de uma virtude teologal. Duvidam? Invoco
Santo Agostinho, mestre venerável que declara em De Doctrina Christiana: “Que há coisas para serem usufruídas, e
outras para serem usadas”. E ele acrescenta: “Aquelas que são para serem usufruídas
nos tornam bem-aventurados”. Coisas que podem ser usadas são úteis: são meios
para um fim exterior a elas. Mas as coisas que são usufruídas nunca são meio
para nada. São fins em si mesmas. Elas nos dão prazer. São inúteis.
Uma sonata de Scarlatti é útil? E um poema? E um jogo
de xadrez? Ou empinar papagaios?
Inúteis.
Ninguém fica mais rico.
Nenhuma dívida é paga.
Por que nos envolvemos nestas atividades, se lhes falta
a seriedade do pragmatismo responsável e os resultados práticos de toda
atividade técnica? É que, muito embora não produzam nada, elas produzem o
prazer.
O primeiro pai fazia ao filho a pergunta da utilidade:
“Qual o nome do meio de produção em que você deseja ser transformado?” O
segundo, impossibilitado de fazer tal pergunta, descobriu um filho que nunca
descobriria de outra forma: “Vamos brincar juntos, no domingo?”
E as nossas escolas? Para quê?
Conheço um mundo de artifícios de psicologia e de didática
para tornar a aprendizagem mais eficiente. Aprendizagem mais eficiente: mais
sucesso na transformação do corpo infantil brincante no corpo adulto produtor.
Mas para saber se vale a pena seria necessário que comparássemos os risos das
crianças com os risos dos adultos, e comparássemos o sono das crianças com o sono
dos adultos. Diz a psicanálise que o projeto inconsciente do ego, o impulso que
vai empurrando a gente pela vida afora, esta infelicidade e insatisfação indefinível
que nos faz lutar para ver se, depois, num momento do futuro, a gente volta a
rir. Sim, diz a psicanálise que este projeto inconsciente é a recuperação de uma
experiência infantil de prazer. Redescobrir a vida como brinquedo. Já pensaram no
que isto implicaria? É difícil. Afinal de contas as escolas são instituições dedicadas
à destruição das crianças. Algumas, de forma brutal. Outras, de forma delicada.
Mas em todas elas se encontra o moto:
A criança que brinca é nada mais que um meio para o
adulto que produz.
(ALVES, Rubem. Da
inutilidade da infância. In: Estórias de quem gosta de ensinar. 13ed.
São Paulo, Cortez, 1989. pp. 5-8)
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