Eu só acredito no Deus que é Amor. E ponto final.
SOBRE DEUS (RUBEM ALVES)
Alguém me disse que gosta das coisas que eu escrevo,
mas não gosta do que penso sobre Deus. Não se aflijam. Nossos pensamentos sobre
Deus não fazem a menor diferença. Nós nos afligimos com aquilo que os outros
pensam sobre nós. Pois eu lhes digo que Deus não dá a mínima. Ele é como uma
fonte de água cristalina. Através dos séculos os homens têm sujado essa fonte
com seus malcheirosos excrementos intelectuais. Disseram que ele tem uma câmara
de torturas chamada inferno onde coloca aqueles que lhe desobedecem, por toda a
eternidade, e ri de felicidade contemplando o sofrimento sem remédio dos
infelizes.
Disseram que ele tem prazer em ver o sofrimento
dos homens, tanto assim que os homens, com medo, fazem as mais absurdas
promessas de sofrimento e autoflagelação para obter o seu favor. Disseram que
ele se compra: em ouvir repetições sem fim de rezas, como se ele tivesse
memória fraca e a reza precisasse ser repetida constantemente para que ele não
se esqueça. Em nome de Deus os que se julgavam possuidores das ideias certas fizeram
morrer nas fogueiras milhares de pessoas.
Mas a fonte de água cristalina ignora as indignidades
que os homens lhe fizeram. Continua a jorrar água cristalina, indiferente
àquilo que os homens pensam dela. Você conhece a estória do galo que cantava
para fazer o sol nascer? Pois havia um galo que julgava que o sol nascia porque
ele cantava. Toda madrugada batia as asas e proclamava para todas as aves do
galinheiro: “Vou cantar para fazer o sol
nascer”. Ato contínuo subia no poleiro, cantava e ficava esperando. Aí o
sol nascia. E ele então, orgulhoso, dizia: “Eu
não disse?” Aconteceu, entretanto, que num belo dia o galo dormiu demais,
perdeu a hora. E quando ele acordou com as risadas das aves, o sol estava
brilhando no céu. Foi então que ele aprendeu que o sol nascia de qualquer
forma, quer ele cantasse. quer não cantasse. A partir desse dia ele começou a
dormir em paz, livre da terrível responsabilidade de fazer o sol nascer.
Pois é assim com Deus. Pelo menos é assim que Jesus
o descreve. Deus faz o seu sol nascer sobre maus e bons, e a sua chuva descer
sobre justos e injustos. Assim não fiquem aflitos com as minhas ideias. Se eu
canto não é para fazer o sol nascer. É porque sei que o sol vai nascer,
independentemente do meu canto. E nem se preocupem com as suas ideias. Nossas
ideias sobre Deus não fazem a mínima diferença para Ele. Fazem, sim, diferença
para nós. Pessoas que têm ideias terríveis sobre Deus não conseguem dormir
direito, são mais suscetíveis de ter infartos e são intolerantes. Pessoas que
têm ideias mansas sobre Deus dormem melhor, o coração bate tranquilo e são
tolerantes.
Fui ver o mar. Gosto do mar quando a praia está
vazia da perturbação humana. Nas tardes, de manhã bem cedo. A areia lisa, as
ondas que quebram sem parar, a espuma, o horizonte sem fim. Que grande mistério
é o mar! Que cenários fantásticos estão no seu fundo, longe dos olhos! Para sempre
incognoscível! Pense no mar como uma metáfora de Deus. Se tiver dificuldades
leia a Cecília Meireles, Mar absoluto.
Faz tempo que, para pensar sobre Deus, eu não leio os teólogos; leio os poetas.
Pense em Deus como um oceano de vida e bondade que nos cerca. Romain Rolland
descrevia seu sentimento religioso como “sentimento oceânico”. Mas o mar, cheio
de vida, é incontrolável. Algumas pessoas têm a ilusão de que é possível
engarrafar Deus. Frequentemente as religiões se proclamam como fábricas de
engarrafar Deus. Quem tem Deus engarrafado tem o poder. Como na estória de
Aladim e a lâmpada mágica. Nesse Deus eu não acredito. Não tenho respeito por
um Deus que se deixa engarrafar. Prefiro o mistério do mar... Algumas pessoas
não gostam do que penso sobre Deus porque elas deixam de acreditar que suas
garrafas religiosas contenham Deus...
(ALVES, Rubem. Sobre Deus.
In: Coisas da alma. São Paulo, Paulus, 2001. pp. 7-10)
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