quarta-feira, 23 de agosto de 2023

Reflexões sobre A Casa e o Mundo lá Fora e o Teatro Documentário

             A peça A Casa e o Mundo lá Fora, fruto de um trabalho de pesquisa documental e elaboração artística e dramática do coletivo teatral “En La Barca Jornadas Teatrais”, estreou em 2018. Essa peça partiu da compreensão do teatro documentário como teatro de responsabilidade social, como posicionamento político, e se estabeleceu como uma resposta à demonização do educador Paulo Freire (1921-1997) pela extrema-direita e às diversas iniciativas de cerceamento da educação e dos professores, chamadas de “Escola Sem Partido”.[1] Ela se insere na chamada Trilogia Documental desse coletivo, formada ainda pelas peças Antônio Gastão – Memória é Trabalho e Lugar de Cabeça, Lugar de Corpo (EN LA BARCA..., 2014).

A Casa e o Mundo lá Fora foi elaborada a partir da proposta teatral chamada Teatro Documentário. Segundo Patrice Pavis em seu Dicionário do Teatro, o Teatro Documentário é o “Teatro que só usa, para seu texto, documentos e fontes autênticas, selecionadas e ‘montadas’ em função da tese sociopolítica do dramaturgo” (2005, p. 387). Essa definição passa por todo um processo histórico em que o Teatro Documentário vai tomando diversas feições, mas sempre conceituado a partir da ideia do teatro como um elemento de crítica e transformação social. Nesse sentido, o objetivo do Teatro Documentário é estabelecer uma possiblidade de reflexão, motivo esse que leva a se buscar desconstruir a figura do personagem, eliminar a quarta parede e estabelecer uma relação direta entre o “narrador” e a plateia, que funciona como uma assembleia participativa.

O processo de realização dessa peça, portanto, começou com o trabalho inicial do coletivo de pesquisar, recolher e selecionar material histórico para, em seguida, fazer “uma pesquisa prática” na sala de ensaio para chegar à forma final do texto e de sua proposta de encenação.[2] Uma versão recente dessa peça pode ser assistida no canal do YouTube do coletivo. No vídeo, é possível perceber a presença de diversos documentos entre fotos, cartas, áudios, projeções que tratam da experiência de Paulo Freire em Angicos, entre outros elementos. A participação da plateia foi solicitada na busca de “palavras geradoras” que dessem conta da experiência vivida na interação deles com o que estava sendo apresentado. A seleção de material nos traz uma “fotografia” de Paulo Freire em sua face mais humana de educador que pensa o mundo por meio da chave da utopia.

A proposta do Teatro Documentário me trouxe diversas reflexões. Entre elas, a que mais me incitou a curiosidade foi a possibilidade de traçar algum paralelo com a obra do Boal, mais especificamente, com o Teatro Jornal e o Teatro Fórum. Em minha pesquisa por resposta a essa indagação, cheguei ao texto Breve Ensaio sobre o Conceito de Teatro Documentário de Davi Giordano. Tal qual eu havia imaginado, afirma Giordano (2013) que Boal, segundo o autor, faz parte da quarta fase de desenvolvimento do Teatro Documentário com seu Teatro Jornal, e que sua experiência com a peça Marias do Brasil, construída como Teatro Fórum, estaria diretamente ligada a um dos principais desdobramentos do Teatro Documentário que é o de apresentar a experiência vivida tal qual ele foi experenciada, muitas vezes proporcionando aos retratados uma experiência mais rica de si mesmos e de seu lugar na sociedade.

Em relação às interfaces entre o Teatro Documentário e os Teatro Fórum e Teatro Jornal de Boal, na leitura de Giordano (2015), surgiram duas indagações, ainda sem resposta, mas que considero relevantes e que poderiam abrir uma possibilidade de futuras pesquisas. São elas: Quais os limites da participação da plateia no Teatro Documentário? No contexto de transformação social, o Teatro do Oprimido, com sua participação direta no próprio curso do trabalho, não seria mais eficaz?

 

Referências

A CASA e o mundo lá fora: cartas de Paulo Freire para Nathercinha. 29 jun. 2023. 1 vídeo (1h15min). Publicado pelo canal En La Barca Jornadas Teatrais (@enlabarcajornadasteatrais4261). Disponível em: https://youtu.be/9yPNWQiW7fU Acesso em: 30 jun. 2023.

EN LA BARCA Jornadas Teatrais. 2014. Disponível em: https://www.enlabarcajornadasteatrais.com/sobre Acesso em: 30 jun. 2023.

GIORDANO, Davi. Breve Ensaio sobre o Conceito de Teatro Documentário. eRevista Performatus, Inhumas, a. 1, n. 5, jul. 2013. Disponível em: https://performatus.com.br/estudos/teatro-documentario/ Acesso em: 30 jun. 2023.

PAVIS, Patrice. Dicionário de teatro. Tradução de J.Guinsburg e Maria Lúcia Pereira. São Paulo: Perspectiva, 2005.

 



[1] Fala do autor e diretor no coletivo teatral Em La Barca Jornadas Teatrais Bruno Peixoto na disciplina Prática Docente em História do Teatro e Literatura Dramática, Universidade de Brasília, em 28 jun. 2023.

[2] Fala do autor e diretor no coletivo teatral Em La Barca Jornadas Teatrais Bruno Peixoto na disciplina Prática Docente em História do Teatro e Literatura Dramática, Universidade de Brasília, em 28 jun. 2023.

MOSAICO: UM POEMA SOBRE O TEMPO E O ENVELHECER (MOSAIC: A POEM ABOUT TIME AND AGING)

Esse ano a questão do envelhecer tem surgido de diversas formas na minha vida. Um "elogio" de que eu parecia muito jovem, uma afirmação de que eu estava agindo como um adolescente, uma cobrança sobre meus cabelos brancos... Tudo isso me enraiveceu tanto que, depois de três dias, nasceu esse poema.

MOSAICO
A vida não é uma linha reta.
Não é nascer, crescer, envelhecer, morrer.
Não é ser cada uma das pessoas
que o sistema diz que devo ser.
Não é me encaixar nas caixinhas
em que você acha que devo viver.
A vida é mosaico.
E de tanto girar em volta do sol
sigo nessa Terra meio tonta
acumulando fatos, fotos, feitos,
desafios e perdas sem conta.
Os amores que tive
e a primeira bicicleta.
O parto do filho mais velho
e a viagem a um mundo novo.
O grande acidente que sofri
e meus desenhos em grafite.
Minha voz de contralto
e meu primeiro dia na praia.
O casamento falido
e os ideogramas chineses.
A risada do filho mais novo
e o vestido estampado.
Meus lábios vermelhos
e meus cabelos brancos.
Todos são cacos coloridos
dispostos em desenho brilhante.
A vida é mosaico.
Conexões que me ligam
aos meus semelhantes...
Experiências atemporais
em que sigo despedaçada
sendo mãe da minha mãe,
e pai do meu bisavô,
sendo meu próprio filho,
e filha dos meus netos.
Assim, me ouça!
Você pode entender?
Eu sou mosaico.
Eu era vida antes de nascer.
Serei vida depois de morrer.
Porque tudo que sou se encaixa
não nas caixinhas que você quer,
mas na figura multicolorida
que a vida segue a conceber.
(Stella Montalvão)
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MOSAIC
Life is not a straight line.
It's not being born, growing up, getting old, dying.
It's not being each of the people
who the system says I should be.
It's not fitting me into boxes
where do you think I should live.
Life is mosaic.
And from so much spinning around the sun
I'm walking on this Earth half dizzy
accumulating facts, photos,
challenges and countless losses.
The loves I had
and the first bicycle.
Childbirth of the eldest son
and the journey to a new world.
The big accident I had
and my graphite drawings.
my contralto voice
and my first day at the beach.
The failed marriage
and Chinese ideograms.
My red lips
and my white hair.
The youngest son's laugh
and my patterned dress.
All are colored shards
arranged in bright design.
Life is mosaic.
Connections that bind me
to my peers...
timeless experiences
in which I remain broken
being my mother's mother,
and my great-grandfather's father,
being my own son,
and daughter of my grandchildren.
So listen to me!
Can you understand it?
I'm a mosaic.
I was life before I was born.
I will be life after I die.
Because everything I am
fits together
not in the boxes you want,
but in the multicolored figure
that life continues to conceive.
(Stella Montalvão)

O Tempo: a vida não é uma linha reta

             A leitura da peça teatral Ialodês de Dione Carlos (2018) estabeleceu uma ponte imediata com muitas das minhas reflexões íntimas a respeito do processo de envelhecimento em geral (e da mulher em particular) dentro da nossa tradição ocidental. Esse processo de envelhecimento que parte de uma visão de um tempo linear fundamentado na relação causa/consequência e nos reflexos que essa visão tem.

Nesse texto, portanto, pretendo fazer algumas relações entre as ideias de tempo, tradição e ancestralidade que estão presentes em Ialodês e que reverberam no poema Mosaico, de minha autoria.

Começo então por um elemento que está presente em todo o texto: a concepção do tempo e de como a vida se apresenta em relação ao tempo. Afirma Prandi: “Para os iorubás o tempo é cíclico, tudo o que acontece é repetição, nada é novidade. Aquilo que nos acontece hoje e que está prestes a acontecer no futuro imediato já foi experimentado antes por outro ser humano, por um antepassado, pelos próprios orixás” (2001, p. 52). Indo mais além dessa noção de tempo cíclico, podemos dizer que, ao final, o tempo é sempre presente:

 

Para os africanos tradicionais, o tempo é uma composição dos eventos que já aconteceram ou que estão para acontecer imediatamente. É a reunião daquilo que já experimentamos como realizado, sendo que o passado, imediato, está intimamente ligado ao presente, do qual é parte, enquanto o futuro nada mais é que a continuação daquilo que já começou a acontecer no presente, não fazendo nenhum sentido a idéia do futuro como acontecimento remoto desligado de nossa realidade imediata (MBITI, 1990 apud PRANDI, 2001, p. 48).

 

Destaco que a primeira epígrafe do texto está diretamente ligada à essa concepção de “presentificação” do tempo:

 

O agora é agora

O agora é passado

O agora é futuro

Uma conjuração mágica de forças passadas e futuras, no presente (SANDY, s.d. apud CARLOS, 2018, p. 62).

 

E essa mesma ideia do tempo-agora reaparece na fala de ONI, ampliando seu alcance em direção ao espaço:

 

ONI

Ontem é agora

Hoje é agora

Amanhã é agora

Agora é aqui (CARLOS, 2018, p. 91).

 

 

E é essa mesma ideia que abre o meu poema Mosaico:

 

A vida não é uma linha reta.

Não é nascer, crescer, envelhecer, morrer.

[...]

A vida é mosaico.

E de tanto girar em volta do sol

sigo nessa Terra meio tonta

acumulando fatos, fotos, feitos,

desafios e perdas sem conta (MONTALVÃO, 2023).

 

Assim, como um mosaico em que os cacos se juntam, amontoam-se e vão tomando forma, a vida-mosaico, caracterizada pelo girar em volta do sol, corresponde ao momento “agora” em que estão presentes todos os “fatos, feitos, desafios e perdas sem conta” (MONTALVÃO, 2023).

O segundo elemento que destaco é a “tradição”. Este elemento surge em duas falas de BISI que dizem de uma tradição que não é dela. No primeiro momento, ela aprendeu na escola dos outros, sob o olhar dos outros, a não confrontar o seu mosaico (CARLOS, 2018, p. 75). A vida na escola dos outros corresponde assim ao “que o sistema diz que devo ser [...] é me encaixar nas caixinhas em que você acha que devo viver” (MONTALVÃO, 2023).

A ideia que encerra meu poema retorna na fala de BISI logo adiante no texto de Dione Carlos. Dessa forma, no meu “mosaico”, digo:

 

Assim, me ouça e entenda:

Eu sou mosaico.

Eu era vida antes de nascer.

Serei vida depois de morrer.

Porque tudo que sou se encaixa

não nas caixinhas que você quer,

mas na figura multicolorida

que a vida segue a conceber (MONTALVÃO, 2023).

 

E BISI confirma o reinventar da tradição ao se ver como mosaico:

 

BISI

Tradição

Eu reinventei a minha

Confrontei o meu mosaico

Com espelho, vidro, cimento, ferro

[...]

Diga sim para mim

Diga sim para você (CARLOS, 2018, p. 76).

 

Na sequência, surge o tema da “ancestralidade”, que se conecta com o tempo agora na fala de BISI:

 

É isso que o mar nos diz

Alguém pensou isso antes de mim

Alguém viveu isso antes de mim

[...]

Mas eu vivo agora o que será revivido depois de mim

Alguém sonhou com você antes de você existir

Cada pessoa é o sonho de alguém

Cada pessoa é o pesadelo de alguém

Eu quero que revivam o meu melhor

Ondas gigantes

Indo e vindo

Eu sou, eu sou

É isso que o mar nos diz (CARLOS, 2018, p. 75).

 

Essa mesma ancestralidade no tempo-agora está presente no meu Mosaico:

 

A vida é mosaico.

Mosaico vivo.

Conexões que me ligam

aos meus semelhantes...

Experiências atemporais

em que sigo despedaçada

sendo mãe da minha mãe,

e pai do meu bisavô,

sendo meu próprio filho,

e filha dos meus netos.

Assim, me ouça e entenda:

Eu sou mosaico.

Eu era vida antes de nascer.

Serei vida depois de morrer (MONTALVÃO, 2023)

 

            Assim, esses três temas - tempo, tradição e ancestralidade - fazem parte dos dois textos: “Ialodês” e “Mosaico”, a partir de um concepção particular de tempo, o tempo-agora...

Enfim, sinto que minha necessidade de colocar essas inquietações em poema se consubstanciam em manifesto, assim como o manifesto de Asali:

 

AYOBAMI: Asali tem algo novo

ASALI: escrevi para mim, tinha pensado em não mostrar, depois percebi que era para todas nós

FEMI: O que é íntimo é universal, Asali.

ASALI: É um manifesto

YOBAMI: Você escreveu um manifesto sobre si?

ASALI: Para mim

ONI: Sobre todas nós

ASALI: Para todas nós (CARLOS, 2018, p. 66)

 

 

Referências

CARLOS, Dione. Ialodês. In: LIMA; Ludemir (org.). Dramaturgia negra. RJ: Funarte, 2018. p. 61-92.

MONTALVÃO, Stella. Mosaico: um poema sobre o tempo e o envelhecer (Mosaic: a poem about time and aging). Disponível em: https://reflexstarlight.blogspot.com/2023/08/mosaico-um-poema-sobre-o-tempo-e-o.html Acesso em: 23 ago. 2023.

PRANDI, Reginaldo. O candomblé e o tempo: concepções de tempo, saber e autoridade da África para as religiões afro-brasileiras. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 16, n. 47, p. 43-58, out 2001. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rbcsoc/a/BZgDYKY47Nn3gdPDwRTzCLf/ Acesso em: 20 jun. 2023.

O Nordeste Imaginado: a tese, o livro, a peça, o jornal

             Em 1999, Durval Muniz de Albuquerque Júnior defende sua tese na área da História: O Engenho Anti-Moderno: a invenção do Nordeste e outras artes. Sua tese se divide em quatro partes que apresento aqui de forma bastante resumida. Em “Geografia em Ruínas”, o autor desenvolve a ideia de que a imagem do Nordeste é recente, filha de uma elite em decadência diante do processo de modernização no Sudeste, sendo assim, filha da modernidade, mas filha reacionária. Em “Espaços da Saudade”, o autor discute como os intelectuais vão criar uma imagem do Nordeste no campo artístico – Literatura, Artes Visuais, Música, Teatro – como um espaço de retorno saudoso às “raízes”. Já em “Territórios da Revolta”, o autor destaca uma outra imagem de Nordeste, também estabelecida pelos intelectuais no campo artístico: um Nordeste voltado para o futuro, o Nordeste das utopias e da revolta diante da miséria. Por fim, em “Cartografias da Alegria”, o autor comenta a importância de movimentos como o Tropicalismo que surge como resposta a um momento histórico complexo de contradições provocado pelo aprofundamento do capitalismo no país – o Cinema Novo, o teatro do grupo Oficina, a Tropicália. Ele ressalta também o consequente movimento de modernização do Nordeste, agora visto como uma “região-problema”: a mais subdesenvolvida, mas a mais “autêntica”. Nessa parte, o autor comenta também o papel do coronel e do cangaceiro nesse imaginário e faz uma linha do tempo.

Essa tese, numa forma mais resumida, mas com a mesma estrutura, é publicada em 1999, com o nome de A invenção do Nordeste e outras artes. Esse livro é o tema de uma série de entrevistas, destacando-se aqui a entrevista do autor ao jornalista Paulo Henrique Amorim, em dezembro de 2017, dividida em 3 episódios, e a entrevista dada ao canal Café Filosófico em outubro de 2019. Nessas entrevistas o autor pontua os pontos mais importantes de sus pesquisa, destacando-se sua proposta de “dissolver o Nordeste” imagético atual e a instituir um novo Nordeste pela reformulação do imaginário que reserva ao Nordeste o papel de subalternidade.

A peça de teatro A Invenção do Nordeste do grupo potiguar Carmim, segundo a própria diretora da montagem, a atriz Quitéria Kelly, teve como ponto de partida suas inquietações quanto às reações xenófobas em relação aos nordestinos na época das eleições presidenciais de 2014. Em busca de material que pudesse colaborar com esse debate, a atriz entra em contato com a obra do historiador Durval Muniz de Albuquerque Júnior. Em suas pesquisas dali em diante, o grupo Carmim: “mergulhou nos mecanismos estéticos, históricos e culturais que contribuíram para a formação de uma visão reducionista do Nordeste brasileiro” (CARMIN, 2020). Um segundo evento, em 2016, dará mais um impulso às pesquisas em andamento:

 

A trupe circulava pelo país no festival Palco Giratório com o espetáculo Jacy. “Em uma das apresentações, alguém da plateia comentou: essa peça é tão boa, nem parece nordestina”, recorda o ator e dramaturgo Henrique Fontes, que assina a dramaturgia de A Invenção do Nordeste com Pablo Capistrano e divide o palco com Rafael Guedes e Igor Fortunato. “Talvez numa tentativa de elogiar, mas muito mais como ofensa, a pessoa queria dizer que não tinha traços de uma peça do Nordeste, com recortes regionalistas em que a direção de arte carrega em tons ocres, chão rachado e figurino de algodão cru”, completa Fontes, citando alguns dos clichês de representação cênica da região (ROMANOFF, 2023).

 

Em agosto de 2017, a peça A Invenção do Nordeste estreia e a partir daí tem uma trajetória de sucesso, sendo vencedora do 31º. Prêmio Shell de Melhor Dramaturgia e do Prêmio Cesgranrio de Teatro na categoria Melhor Espetáculo, ambos em 2019. A peça está dividida em 7 “movimentos” e o enredo é descrito pelo grupo Carmim como:

 

Um diretor é contratado por uma grande produtora para realizar a missão de selecionar um ator nordestino que possa interpretar com maestria um personagem… nordestino! Depois de vários testes e entrevistas, dois atores vão para a final e o diretor tem sete semanas para deixá-los prontos para a última fase. Durante a preparação, os atores refletem sobre sua identidade, cultura, história pessoal e descobrem que ser e viver um personagem nordestino não é tarefa simples (CARMIM, 2020).

 

            A peça em si está claramente fundamentada na obra de Durval Muniz de Albuquerque Júnior na menção aos temas: o corpo fraco do nordestino, o cabra-macho, a seca, a fome, o coronel e o cangaceiro. Esses temas se entrelaçam, montando uma crítica à imagem “inventada” pelas elites regionais em “parceria” com os intelectuais.

Sendo a peça de 2017, todo o processo histórico pelo qual o país passou em 2018 e em 2022 com a eleições presidenciais, e que representou um aprofundamento da xenofobia que foi o ponto de partida para a peça, está de certa forma “fora” da peça e, na minha opinião, são elementos que poderia indicar a necessidade de uma “atualização” dela. Por exemplo, um evento de 2021 é marcante e poderia ser um elemento a ser discutido na peça.

No dia 22 de janeiro de 2021, a revista Veja São Paulo publicou uma capa especial sobre o 467º. aniversário da cidade paulista. O jornal coloca em sua capa a seguinte chamada: “A Capital do Nordeste: os novos migrantes que reinventam o design, a gastronomia, as startups e outras atividades da metrópole, que completa 467 anos” (ALVES, 2021) juntamente com uma foto de seis migrantes nordestinos (figura 1).

 

Figura 1 – Capa Veja São Paulo – 22 de janeiro de 2021.


Fonte: Veja São Paulo/Reprodução

 

A ideia de que São Paulo seria a “capital do Nordeste” provocou uma série de críticas, bem como a foto que acompanha a reportagem, com seis pessoas brancas ou embranquecidas:

 

os internautas, principalmente nordestinos, não deixaram o caso passar despercebido e criticaram duramente a revista “O Nordeste sendo colocado como um local homogêneo, de população homogênea, cuja capital está situada em outro local que sempre marginalizou os nordestinos e os reduziu a um estereótipo. É tipo um editorial de um jornal parisiense falando: Paris, a capital da África. Nojento”, disparou uma jovem. “Capa da Veja SP que trata do nordeste, uma das regiões mais negras no Brasil, não tem uma pessoa negra. Se apoia em estereótipos visuais para falar da região e resume uma região plural e complexa a uma caixinha”, avaliou a repórter Vitória Régia da Silva (ROCHA, 2021).

 

Eu acredito que as questões aqui indicadas não encerram o debate, mas sugerem a necessidade de um aprofundamento dos temas, incluindo a forma como as elites do sul começam a tentar se apropriar do que é visto como positivo no nordestino desde que “filtrado” na cultura do sul.

 

Referências:

ALBUQUERQUE JUNIOR, Durval Muniz. O engenho anti-moderno: a invenção do Nordeste e outras artes. 507f. 1994. 507f. Tese (Doutorado em História) - Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Programa de Pós-Graduação em História. Campinas, 1994. Disponível em: https://repositorio.unicamp.br/acervo/detalhe/96855 Acesso em: 13 jun. 2023.

ALBUQUERQUE JUNIOR, Durval Muniz. Durval: é preciso dissolver esse Nordeste! [Entrevista concedida a] Paulo Henrique Amorim. TV Afiada. Disponível em: https://youtu.be/t_Z_e-EK19Y Acesso em: 13 jun. 2023.

ALBUQUERQUE JUNIOR, Durval Muniz. Durval: o elogio da mestiçagem preserva a Casa Grande. [Entrevista concedida a] Paulo Henrique Amorim. TV Afiada. Disponível em: https://youtu.be/J6eKUTetU58 Acesso em: 13 jun. 2023.

ALBUQUERQUE JUNIOR, Durval Muniz. Durval: o sertanejo é antes de tudo... um animal! A baleia! [Entrevista concedida a] Paulo Henrique Amorim. TV Afiada. Disponível em: https://youtu.be/HaibBbb0FeA Acesso em: 13 jun. 2023.

ALBUQUERQUE JUNIOR, Durval Muniz. A invenção do nordeste. [Entrevista concedida a] Gilmar Santos. Humus Cultural. 1 vídeo (48min.). Disponível em: https://youtu.be/_nGHeVZZmHM Acesso em: 13 jun. 2023.

ALVES, Maíra. Veja elege SP como 'capital do Nordeste' e capitais nordestinas se manifestam. Correio Braziliense. 22 jan. 2021. Disponível em: https://www.correiobraziliense.com.br/brasil/2021/01/4902074-veja-elege-sp-como-capital-do-nordeste-e-capitais-nordestinas-se-manifestam.html

GRUPO CARMIM. Disponível em: https://www.grupocarmin.com.br/?page_id=1460 Acesso em: 13 jun. 2023.

REYNAUD, Nayara. 31º PRÊMIO SHELL DE TEATRO | Veja os vencedores do tradicional prêmio do teatro brasileiro. nervos. 19 mar. 2019. Disponível em: https://www.nervos.com.br/post/2019/03/13/31premioshelldeteatro Acesso em: 13 jun. 2023.

ROCHA, Lucas. Após capa absurda da Veja SP, prefeituras nordestinas reagem da MELHOR forma e viralizam na web – confira! Hugo Gloss. 23 jan. 2021. Disponível em: https://hugogloss.uol.com.br/buzz/apos-capa-absurda-da-veja-sp-prefeituras-nordestinas-reagem-da-melhor-forma-e-viralizam-na-web-confira/ Acesso em: 13 jun. 2021.

ROMANOFF, Ricardo. “A Invenção do Nordeste” reflete sobre identidades culturais e estereótipos.  Matinal Jornalismo Roger Lerina. 18 maio 2023. Disponível em: https://www.matinaljornalismo.com.br/rogerlerina/teatro/a-invencao-do-nordeste-grupo-carmin/ Acesso em: 15 jun. 2023.