Não me lembro como esse livro parou em minhas mãos. Mas foi ele que me deu as respostas. As minhas respostas, aquelas que calaram fundo na minha alma.
Sobre Jequitibás e Eucaliptos - Amar (Rubem Alves)
Foi o tema que me deram, “a formação do educador”, que
me fez passar de tropeiros a caixeiros. Todas, profissões extintas ou em
extinção.
Educadores, onde estarão? Em que covas terão se escondido?
Professores, há aos milhares. Mas professor é profissão, não é algo que se
define por dentro, por amor.
Educador, ao contrário, não é profissão: é vocação.
E toda vocação nasce de um grande amor, de uma grande esperança.
Profissões e vocações são como plantas. Vicejam e
florescem em nichos ecológicos, naquele conjunto precário de situações que as
tornam possíveis e - quem sabe? – necessárias. Destruído esse habitat, a vida
vai se encolhendo, murchando, fica triste, mirra, entra para o fundo da terra,
até sumir.
Com o advento da indústria, como poderia o artesão
sobreviver? Foi transformado em operário de segunda classe, até morrer de
desgosto e saudade. O mesmo com os tropeiros, que dependiam das trilhas
estreitas e das solidões, que morreram quando o asfalto e o automóvel chegaram.
Destino igualmente triste teve o boticário, sem recursos para sobreviver num
mundo de remédios prontos. Foi devorado no banquete antropológico das multinacionais.
(...)
E o educador? Que terá acontecido com ele?
Existirá ainda o nicho ecológico que torna possível a sua existência? Resta-lhe
algum espaço? Será que alguém lhe concede a palavra ou lhe dá ouvidos? Merecerá
sobreviver? Tem alguma função social ou econômica a desempenhar?
Uma vez cortada a floresta virgem, tudo muda. É
bem verdade que é possível plantar eucaliptos, essa raça sem-vergonha que
cresce depressa, para substituir as velhas árvores seculares que ninguém viu
nascer nem plantou.
Para certos gostos, fica até mais bonito: todos
enfileirados, em permanente posição de sentido, preparados para o corte. E para
o lucro. Acima de tudo, vão-se os mistérios, as sombras não penetradas e
desconhecidas, os silêncios, os lugares ainda não visitados. O espaço se
racionaliza sob a exigência da organização. Os ventos não mais serão cavalgados
por espíritos misteriosos, porque todos eles só falarão de cifras,
financiamentos e negócios.
Que me entendam a analogia.
Pode ser que educadores sejam confundidos com
professores, da mesma forma como se pode dizer: jequitibá e eucalipto, não é
tudo árvore, madeira? No final, não dá tudo no mesmo?
Não, não dá tudo no mesmo, porque cada árvore é a revelação
de um habitat, cada uma delas tem cidadania num mundo específico. A primeira,
no mundo do mistério, a segunda, no mundo da organização, das instituições, das
finanças. Há árvores que têm uma personalidade, e os antigos acreditavam mesmo
que possuíam uma alma. É aquela árvore,
diferente de todas, que sentiu coisas que ninguém mais sentiu, Há outras que são
absolutamente idênticas umas às outras, que podem ser substituídas com rapidez e
sem problemas.
Eu diria que os educadores são como as velhas
árvores. Possuem uma frase, um nome, uma “estória” a ser contada. Habitam um
mundo em que o que vale é a relação que os liga aos alunos, sendo que cada
aluno é uma “entidade” sui generis,
portador de um nome, também de uma “estória”, sofrendo tristezas e alimentando
esperanças. E a educação é algo para acontecer neste espaço invisível e denso,
que se estabelece a dois. Espaço artesanal.
Mas professores são habitantes de um mundo
diferente, onde o “educador” pouco importa, pois o que interessa é um “crédito”
cultural que o aluno adquire numa disciplina identificada por uma sigla, sendo
que, para fins institucionais, nenhuma diferença faz aquele que a ministra. Por
isto mesmo professores são entidades “descartáveis”, da mesma forma como há
canetas descartáveis, coadores de café descartáveis, copinhos plásticos de café
descartáveis.
De educadores para professores realizamos o salto
de pessoa para funções.
É doloroso, mas é necessário reconhecer que o
mundo mudou. As florestas foram abatidas. Em seu lugar, eucaliptos. (...)
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Articula-se aqui um mundo a partir da interioridade.
Com o advento do utilitarismo, entretanto, tudo se alterou. A pessoa passou a
ser definida pela sua produção: a identidade é engolida pela função. E isto se
tomou tão arraigado que, quando alguém nos pergunta o que somos, respondemos
inevitavelmente dizendo o que fazemos. Com esta revolução instaurou-se a
possibilidade de se gerenciar e administrar a personalidade, pois que aquilo
que se faz e se produz, a função, é passível de medição, controle, racionalização.
A pessoa praticamente desaparece, reduzindo-se a um ponto imaginário em que
várias funções são amarradas.
E isto que eu quero dizer ao afirmar que o nicho ecológico
mudou. O educador, pelo menos o ideal que minha imaginação constrói, habita um
mundo em que a interioridade faz uma diferença, em que as pessoas se definem
por suas visões, paixões, esperanças e horizontes utópicos. O professor, ao
contrário, é funcionário de um mundo dominado pelo Estado e pelas empresas. É
uma entidade gerenciada, administrada segundo a sua excelência funcional,
excelência esta que é sempre julgada a partir dos interesses do sistema. Frequentemente
o educador é mau funcionário, porque o ritmo do mundo do educador não segue o
ritmo do mundo da instituição. (...)
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O fato é que não dispomos de critérios para
avaliar esta coisa imponderável a que se dá o nome de educação. E é aqui que se
encontra o problema: se não dispomos sequer de critérios para pensar
institucionalmente a educação, como pensar o educador? A formação do educador:
não existirá aqui uma profunda contradição? Plantar carvalhos? Como, se já se
decidiu que somente eucaliptos sobreviverão?
Plantar tâmaras, para colher frutos daqui a cem
anos? Como, se já se decidiu que todos teremos de plantar abóboras, a serem
colhidas daqui a seis meses?
O educador é um ausente. Nosso espaço funcional, gerenciado, torna possível falar
sobre funcionários definidos pela instituição. Mas ele não permite que se fale sobre
coisa alguma que se move num espaço definido pela liberdade. O educador tem,
assim, o estatuto de um conceito utópico, de existência prática proibida e, por
isto mesmo, existência teórica impossível. E, é por isto que as ciências
silenciaram sobre ele. (...)
No entanto, continuamos a falar sobre o educador,
a nos perguntar sobre sua formação - como se ele fosse uma entidade entre
outras. Não é curioso isto - que continuemos a falar assim, a despeito de todas
as proibições? Proibição prática, proibição teórica... Curioso que esta fantasia
continue a nos assombrar e a nos inspirar como visão, talvez, daquilo que poderíamos
ser se não tivéssemos sido domesticados.
Aqui, talvez, uma ciência pouco ortodoxa possa vir
em nosso auxílio, para nos ajudar a compreender este discurso sobre
possibilidades ainda não realizadas, que só se articula pela mediação da
imaginação e da fantasia. Discurso perigoso e amedrontador, que tem em uma de suas
extremidades o louco e na outra o poeta. Na verdade, que tênues são os limites
que os separam porque, cada um, ao seu modo, se recusa a falar sobre o real, preferindo
antes anunciar o ausente. É evidente que o pensamento marcado pela objetividade
bruta, e que se esgota nos objetos apresentados à sua inspeção, recuará com
pavor e desprezo, pois ele tem o seu lugar nas opções que triunfaram e nos
fatos que se impuseram, enquanto o discurso do imaginário explora o real do ponto
de vista dc suas ausências, das possibilidades que fracassaram, não por serem
menos belas, mas por serem mais fracas, mas que continuam presentes sob a forma
de promessas, esperanças, fantasias, utopias... loucura.
“Aqui a palavra não é a expressão de uma coisa,
mas antes da ausência desta coisa, palavra que faz com que as coisas
desapareçam, impondo em nós o sentimento de uma ausência universal”. (Maurice
Blanchot)
É a ciência pouco ortodoxa da psicanálise que nos
informa que o discurso sobre as ausências, discursos dos sonhos, das
esperanças, tem o seu lugar na interioridade de nós mesmos, explodindo,
emergindo, irrompendo sem permissão, para invadir e embaraçar o mundo tranquilo,
racional e estabelecido de nossas rotinas institucionais. Seria possível, então,
compreender que a polaridade entre educadores e professores não instaura uma dicotomia
entre duas classes de pessoas, umas inexistentes e utópicas, outras existentes
e vulgares, mas antes uma dialética que nos racha a todos, pelo meio, porque todos
somos educadores e professores, águias e carneiros, profetas e sacerdotes, reprimidos
e repressores.
Não é por acidente, então, que os professores
sejam aqueles que sonham com os educadores, e os funcionários tenham visões de
liberdade, e os animais domésticos façam poemas e tenham loucuras sobre o
selvagem que habita cada um deles. Não se trata de formar o educador, como se
ele não existisse. Como se houvesse escolas capazes de gerá-lo, ou programas
que pudessem trazê-lo à luz. Eucaliptos não se transformarão em jequitibás, a
menos que em cada eucalipto haja um jequitibá adormecido. O que está em jogo
não é uma técnica, um currículo, uma graduação ou pós-graduação.
Nenhuma instituição gera aqueles que tocarão as
trombetas para que seus muros caiam.
O que está em jogo não é uma administração da vocação,
como se os poetas, profetas, educadores, pudessem ser administrados.
Necessitamos de um ato mágico de exorcismo. Nas
histórias de fadas é um ato de amor, um beijo, que acorda a Bela Adormecida de
seu sono letárgico, ou o príncipe transformado em sapo.
Diz-nos Freud que a questão decisiva não é a compreensão
intelectual, mas um ato de amor. São atos de amor e paixão que se encontram nos
momentos fundadores de mundos, momentos em que se encontram revolucionários, os
poetas, os profetas, os videntes. E depois, quando se esvai o ímpeto criador,
quando as águas correntes se transformam primeiro em lagoas, depois em charcos,
que se estabelece a gerência, a administração, a burocracia, a rotina, a
racionalização, a racionalidade.
A questão não é gerenciar o educador. É necessário
acordá-lo. E, para acordá-lo, uma experiência de amor é necessária. Já sei a
pergunta que me aguarda: - E qual é a receita para a experiência de amor, de
paixão? Como se administram tais coisas? Que programas se constroem?
Aí eu tenho de ficar em silêncio, porque não tenho
resposta alguma.
Na verdade, quando nos propomos tais perguntas
estamos, realmente, nos questionando: Por que não ficamos grávidos e grávidas
com o educador? Por que não somos consumidos pela paixão, por mais irracional
que ela seja?
Ah! Como a paixão é doce. Somente os apaixonados
sabem viver e morrer. Somente os apaixonados, como D. Quixote, vislumbram
batalhas e se entregam a elas. A paixão é o segredo do sentido da vida. E que
outra questão mais importante poderá haver? Dizia Camus que o único problema filosófico
realmente sério é "julgar-se a vida é digna ou não de ser vivida”.
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Em Gabriela,
Cravo e Canela há um momento em que a filha de um coronel diz à sua mãe que
pretendia casar-se com um professor. Ao que a mãe retruca, numa clássica lição
de realismo político: “E o que é um professor, na ordem das coisas? Que tem
ensino a ver com poder? Como podem as palavras se comparar com as armas? Por
acaso a linguagem já destruiu e já construiu mundos?”
Parece que o destino do educador se dependura na
resposta a estas questões. Se fazemos a nossa aposta em que o mundo humano é
regido por leis idênticas àquelas que movem o universo físico, se acreditamos
que a sociedade tem o estatuto de coisa, se aceitamos que o futuro não passa
por dentro do que pensamos e do que dizemos, em resumo, se não arriscamos tudo
na confiança de que a palavra tem um poder criador, restamos então uma única
opção: o silêncio. É muito revelador que Marx, para destruir os hegelianos de
esquerda, que acreditavam que também as palavras entram na argamassa com que a
sociedade é construída, o tivesse feito justamente com o auxílio de palavras: A ideologia alemã. Se a crítica deixa as
coisas como estão, por que fazer a crítica da crítica? Se as palavras são
vazias de poder, por que usar tantas palavras para discutir o poder? Não, o fato
é que todos aqueles que ainda têm a ousadia de falar e escrever, acreditam,
ainda que de forma tênue, que o seu falar faz uma diferença.
Isto é de crucial importância para o educador, e
desta crença depende o seu sono e o seu acordar. Porque, com que instrumentos
trabalha o educador? Com a palavra. O educador fala. Mesmo quando o seu
trabalho inclui as mãos, como o mestre que ensina o aprendiz a moldar a argila,
ou o cientista ensina o estudante a manejar o microscópio, todos os seus gestos
são acompanhados de palavras. São as palavras que orientam as mãos e os olhos.
Vocês, que acompanharam o documentário Raízes Negras ou leram o livro, se
lembrarão de que, quando Kunta Kinte foi vendido a um dono, um novo nome lhe
foi dado. E isto não foi acidente. O primeiro ato de domínio exige que o
dominado esqueça o seu nome, perca a memória do seu passado, não mais se lembre
de sua dignidade e aceite os nomes que o senhor impõe. A perda da memória é um
evento escravizador. É por isto mesmo que a mais antiga tradição filosófica do mundo
ocidental afirma que o nosso destino depende de nossa capacidade e vontade de
recuperar memórias perdidas. Na linha que vai de Platão a Freud, o evento libertador
exige que sejamos capazes de dar nomes ao nosso passado. A lembrança é uma
experiência transfiguradora e revolucionária. Tanto assim que Marcuse chega a
se referir à função subversiva da memória. Por mais curioso e paradoxal, parece
que o mais distante é aquilo que está mais próximo do nosso futuro.
E agora eu convidaria esta pessoa singular, que só
tem nas mãos a palavra, a um ato de exorcismo e quebra de feitiço. É necessário
lembrar, recuperar a memória dos momentos em que o mundo foi instaurado. Lá,
quando a criança, com seus olhos virgens, olha para o todo amorfo e inominável
ao seu redor, e a desordem gira em torno dela, até que a palavra lhe é dirigida, dando nomes, impondo ordem, fazendo nascer
um mundo. “No princípio era a Palavra...” Não qualquer palavra, porque as
palavras eficazes são aquelas que partem daqueles que são os outros significativos, aqueles que têm, com
a criança, um destino comum, aqueles para quem a criança importa, porque ela
será uma companheira numa mesma habitação, seja casa, seja vila, seja jornada...
Jornadas também são habitações. E ali descobrimos que “cada pessoa que entra em
contato com a criança é um professor que incessantemente lhe descreve o mundo,
até o momento em que a criança é capaz de perceber o mundo tal como foi
descrito” (Carlos Castañeda em Viagem a Ixtlan):
professores que não sabem que são professores, sem créditos em didática nem
conhecimento de psicologia. Só dispõem da palavra e do destino comum. E sem
saber como, e sem ter nenhuma teoria sobre como é que as coisas acontecem, os
mundos são criados.
“E o que é um professor, na ordem das coisas?”
Talvez que um professor seja um funcionário das
instituições que gerenciam lagoas e charcos, especialista em reprodução, peça
num aparelho ideológico de Estado. Um educador, ao contrário, é um fundador de
mundos, mediador de esperanças, pastor de projetos.
Não sei como preparar o educador. Talvez que isto
não seja nem necessário, nem possível... É necessário acordá-lo. E aí
aprenderemos que educadores não se extinguiram como tropeiros e caixeiros.
Porque, talvez, nem tropeiros nem caixeiros tenham desaparecido, mas permaneçam
como memórias de um passado que está mais próximo do nosso futuro que o ontem.
Basta que os chamemos do seu sono, por um ato de amor e coragem. E talvez,
acordados, repetirão o milagre da instauração de novos mundos.
ALVES, Rubem. Sobre jequitibás e eucaliptos – amar.
In: Conversas com quem gosta de ensinar.
23ed. São Paulo, Cortez, 1989. (pp. 11-30).