domingo, 27 de julho de 2014

UMA SEMANA COM RUBEM AVES - ÚLTIMO DIA - DESPEDIDA


Despedir-se é sempre muito difícil para mim. Despedir-me de você, meu caro amigo Rubem Alves, é ainda mais sofrido. 
Deixei aqui no meu blog alguns de seus textos. É para lembrar aos outros de suas reflexões, é para guardar as que fiz toda a vez que li um texto seu.
Terei sempre suas palavras, seus textos, como uma referência preciosa em minha vida. 
Obrigada!

E o que é a vida?

“Você está caminhando por um bosque. A sede é grande. Precisa beber água. Você chega a uma bifurcação. Na trilha da direita está escrito: “Caminho fácil. Ao final, uma mina”. Na trilha da esquerda está escrito: “Caminho difícil. Ao final, uma pedra”. Você não precisa tomar uma decisão; o caminho a ser tomado é óbvio. Você toma o caminho da esquerda. Segunda situação: você chega à bifurcação e no caminho da direita está escrito: “Caminho muito difícil. Ao final, uma mina”. À esquerda: “Caminho fácil. Ao final, uma pedra”. A situação se complica; haverá dores no caminho. Mas, no final do caminho difícil você encontrará o que você deseja: água. Você não será tolo de escolher o caminho fácil e chegar à pedra. Terceira situação: você chega à bifurcação e vê escrito, tanto no caminho da direita quanto no da esquerda: “Caminho difícil”. Mas um malvado apagou o que estava embaixo. Assim, você não sabe o que vai encontrar no final. E você não pode voltar. Você sabe que ambos os caminhos estão cheios de dor e o final é incerto e desconhecido. Você terá de decidir sem certezas, entre uma dor e outra, fazendo uma aposta.
A vida é assim. Seria bom se as alternativas com que nos defrontamos fossem sempre entre o certo e o errado, o bom e o mau. Seria fácil viver. Mas há situações que nos colocam diante de alternativas igualmente dolorosas e de resultado incerto.”


ALVES, Rubem. Ame e deixe morrer... In: Coisas do amor. São Paulo, Paulus, 2001. pp. 35-36)

sexta-feira, 25 de julho de 2014

UMA SEMANA COM RUBEM ALVES - SEXTO DIA - ALEGRIA

Muitas vezes, ao conversar com amigas sobre o que seria um homem ideal, chegávamos a um consenso: imprescindível mesmo é que ele tenha bom humor, que seja capaz de nos fazer rir da vida, que seja capaz de rir de si mesmo... Por que o que a gente quer mesmo, de verdade, é alegria! 

ALEGRIA (RUBEM ALVES)

Não, eu não quero prazer! Eu quero alegria! Era isso o que dizia uma das amantes de Tomás, o médico de A Insustentável Leveza do Ser. E Tomás ficava perdido porque prazer ele sabia dar, é coisa de receita fácil, mora no corpo. Mas alegria é coisa mais sutil, mora na alma, no lugar das fantasias e da saudade.
Há um jeito fácil de saber se o que se sente é prazer ou alegria. Basta prestar atenção no corpo. Se ele for ficando cada vez mais pesado, é prazer. Se for ficando cada vez mais leve, é alegria.
Todo mundo já experimentou isso num churrasco ou numa feijoada, a comida é gostosa, agrada boca e nariz, boca sempre cheia, dentes incansáveis, mais uma cervejinha e, aos poucos, a gente vai ficando desanimado, estufado, incomodado, não aguenta mais. Pena que o costume romano de ter um vomitório em cada refeitório tenha sido esquecido, quem sabe algum arquiteto imaginoso vai convencer um dono de restaurante a introduzir tal progresso no seu estabelecimento.
O prazer é sempre assim - ao final o corpo diz: Chega! Não aguento mais! E isso é verdade também para as coisas do amor carnal. No ônibus a mocinha incansavelmente se dedicava a abraçar, acariciar, apalpar, beijar, mordiscar o namorado, coitadinha, pensando que assim os desejos dele seriam acesos de forma incontrolável e ele nunca mais a abandonaria. Fiquei com dó dela, por não entender das coisas do prazer, e dele, pois de forma alguma gostaria de estar na sua pele. O final, que não presenciei, era inevitável: ela seria mandada embora. E era justamente isso que o Tomás fazia com todas as suas amantes: não deixava que nenhuma delas dormisse em sua casa. Terminada a orgia do amor, tratava de chamar um táxi e despachá-las para suas casas, porque sua maquineta de prazer não era realejo que fica tocando enquanto se gira a manivela. Há manivelas que, depois de algumas voltas, se recusam a girar de novo, ficam emperradas. Assim é a máquina do amor - tanto nos homens quanto nas mulheres.
Com a alegria é diferente. O corpo vai ficando cada vez mais leve; quanto mais come, com mais fome fica.
Você vai dizer que não pode ser, que não existe jeito de comer sem se encher. Pois eu digo que tudo tem a ver com a fome que se tem e com a comida que se come.
Foi justamente isso que pôs meu realejo de pensamento a funcionar. E esse realejo, posso assegurar, não precisa de manivela para produzir música, é motocontínuo, movido por alegria, pois pensar é uma alegria, brincar com as ideias, como se fosse criança brincando: criança não se cansa, só para de brincar por imposição dos superiores, pois brinquedo, além de dar prazer, dá alegria também. E é por isso que mesmo quando o corpo é obrigado a parar, a cabeça desobedece e continua a brincar. O que não é o caso do prazer, pois quem seria louco de continuar a comer a feijoada no pensamento, se o estômago não aguenta mais? Barriga que se encheu gostaria mesmo é de se esquecer do que comeu...
Uma outra diferença é que o prazer, para acontecer, precisa que a coisa exista. Ele precisa da feijoada, do churrasco, da boca que dá o beijo. Já a alegria, para haver, não precisa que a coisa exista. O que me faz pensar que ela deve ser mais divina que o prazer pois, a se acreditar no Riobaldo, Deus é aquele que é, mesmo quando não existe.
A alegria é coisa de criança. Pois criança se alegra com qualquer coisa, bolinha de gude, pião, casa de toquinho, torre de dominó, panelinha de fazer comidinha, coisa do mundo de faz-de-contas. E percebi que também sou assim. Claro que meu pensamento sabe trabalhar as coisas importantes. Mas quando ele está livre e não lhe dou uma tarefa a cumprir, ele anda vagabundo como criança, do jeitinho do Menino Jesus como conta Alberto Caeiro, brincando com ideias sem importância, como os riachinhos, as cachoeiras, as saracuras, os pintassilgos, os pica-paus, as araucárias, um inútil monjolo velho, um forninho de barro que ainda não fiz, as galinhas d'angola que ainda não estão lá, uma casinha que vou fazer para a minha neta, tudo lá nos ermos da Mantiqueira, mesmo quando lá não estou, só na imaginação, que é o lugar onde a alegria vem, me faz virar menino e começo a voar como o Peter Pan.
Pra quem não sabe, é bom prestar atenção. Assim também é o amor. Para alguns, a dita pessoa amada é só objeto de prazer, feijoada, comeu, gostou, ficou cheio, enjoou... Para outros a pessoa amada é alegria leve do pensamento, que brinca com ela mesmo quando está longe. Esses estarão sempre com fome...
3/7/93



(ALVES, Rubem. A Barbie. In:Teologia do cotidiano. São Paulo, Olhos d'Água, 1994. pp. 26-29)

UMA SEMANA COM RUBEM ALVES - QUINTO DIA - A BARBIE

Em tempo em que se discute a ética de se fazer propagandas voltadas para incentivar o consumo entre crianças, inclusive com alguns passos importantes como a decisão de que ela são abusivas pelo Conselho Nacional de Direitos da Criança e do Adolescente, esse texto, apesar de ter sido escrito em 1994, infelizmente continua mais atual do que nunca.

A BARBIE (RUBEM ALVES)

Fiquei comovido quando li que foram encontradas bonecas em túmulos de crianças no Egito, na Grécia e em Roma. Pude imaginar o que os pais, deveriam estar sentindo ao colocar aquele brinquedo junto ao corpo da filha morta. Eles o faziam para que ela não partisse sozinha, para que ela não tivesse medo...
De fato, uma criança abraçada a uma boneca é uma criança sem medo, uma criança feliz. Os meninos, proibidos de ter bonecas, se abraçam aos seus ursinhos de pelúcia. E nós, adultos, proibidos de ter bonecas e de ter ursinhos de pelúcia, nos abraçamos ao travesseiro... Os objetos são diferentes, mas o seu sentido é o mesmo: o desejo de aconchego e de ternura.
Por isso eu acho que o senhor e a senhora fizeram muito bem ao dar uma boneca de presente para a sua filhinha.
Com uma exceção, é claro: se a boneca não foi a Barbie. Porque a Barbie não é uma boneca. Falta a ela o poder que têm as outras bonecas, bebezinhos, de afugentar o medo e provocar sentimentos maternais de ternura. Não posso imaginar uma menina dormindo abraçada à sua Barbie. Nenhum pai colocaria a Barbie no túmulo da filha morta.
A Barbie não é boneca. É uma bruxa.
Posso bem imaginar o espanto nos seus olhos. Eu imagino também os seus pensamentos: O Rubem perdeu o juízo. A Barbie é uma boneca de plástico, não mexe, não pensa, não fala. E agora ele diz que ela é uma bruxa...
Que as bonecas, ao contrário das aparências, têm uma vida própria, eu aprendi no 2º. ano primário. Minha professora me deu um livro sobre bonecas e bonecos: enquanto a gente estava acordado, elas ficavam deitadinhas, olhinhos fechados, fingindo que dormiam. Mas bastava que os vivos dormissem para que elas acordassem e se pusessem a falar coisas.
As bonecas foram os primeiros brinquedos inventados pelos homens.
E foram também os primeiros instrumentos de magia negra. Um alfinete, aplicado no lugar certo de uma boneca - assim afirmam os entendidos - tem o poder de matar a pessoa que se parece com ela.
Pois eu digo que a Barbie é uma bruxa. Bruxa enfeitiça. Enfeitiçada, a pessoa deixa de ter pensamentos próprios. Só pensa o que a bruxa manda. A pessoa enfeitiçada fica possuída pelos pensamentos da feiticeira e só pensa e faz aquilo que ela manda.
Se falo é porque vi, com esses olhos que a terra há de comer. Basta que as crianças comecem a brincar com a Barbie, para que fiquem diferentes. O pai manda, a mãe manda, a criança faz birra e não obedece. Não é assim com a Barbie. Basta que a Barbie mande para que elas obedeçam.
De novo você vai me contestar, dizendo que a Barbie não fala e não tem vontade. Por isso não pode nem dar ordens e nem ser obedecida.
Errado. O fantástico é que ela, sem falar e sem ter vontade, tenha mais poder sobre a alma da criança que os pais. Quem me revelou isso foi o futurólogo Alvin Toffler, no seu livro O Choque do Futuro, que li em 1971. O capítulo A Sociedade do Joga-Fora começa com a Barbie. Nascida em 1959, em 1970 mais de 12 milhões já tinham sido vendidas. Um negócio da China. E por quê? Porque a Barbie, diferente das bonecas antigas, bebês que se contentam com uma chupeta e um chocalho, tem uma voracidade insaciável. A Barbie é uma boneca que nunca está contente: ela sempre pede mais. E essa é a grande lição que ela ensina às crianças: Compra, por favor!
Para se comprar há as roupas da Barbie, a banheira da Barbie, o secador de cabelo, o jogo de beleza, o guarda-roupa, a cama, a cozinha, o jogo de sala de estar, o carro, o jipe, a piscina, o chalé de praia, o cavalo e os maridos, que podem ser escolhidos e alternados entre o loiro e o moreno etc. etc.
A Barbie está sempre incompleta. Portanto, com ela vem sempre uma pitada de infelicidade. Aliás, essa é a regra fundamental da sociedade consumista: é preciso que as pessoas se sintam infelizes com o que têm, para que trabalhem e comprem o que não têm. A Barbie tem esse poder: quem a tem está sempre infeliz porque há sempre algo que não se tem, ainda. E os engenheiros da inveja, a serviço das fábricas, se encarregam de estar sempre produzindo esse novo objeto que ainda não foi comprado. Mas é inútil comprar. Porque logo um outro será produzido. É a cenoura na frente do burro... Ela nunca será comida.
Quem dá uma Barbie para uma criança põe a criança numa arapuca sem saída. Porque, ao ter uma Barbie, ela ingressa no Clube das Meninas que têm Barbie. E as conversas, nesse clube, são assim: Eu tenho o chalé de praia da Barbie. Você não tem. Ao que a outra retruca: Não tenho o chalé, mas tenho o marido loiro da Barbie, que você não tem.
Essa é a primeira lição que a inofensiva boneca de plástico ensina. Ensina a horrível fala do eu tenho, você não tem. A maldição das comparações. A maldição da inveja. Você deve conhecer alguns adultos que fazem esse jogo. Haverá coisa mais chata, mais burra, mais mesquinha? Ao dar uma Barbie de presente é preciso que você saiba que a menina inevitavelmente aprenderá essa fala.
Isso feito, uma segunda fala entra inevitavelmente em cena, impulsionada pelas ilusões da inveja. A menininha pensa: Estou infeliz porque não tenho. Se eu tiver, serei feliz. O jeito de se ter é comprar.
- Papai...
- Que é, minha filha?
- Compra o chalé de praia da Barbie? Eu quero tanto...

Filha na arapuca. Pai na arapuca.
Mas há uma saída. E, para ela, procuro sócios. Vamos começar a produzir o próximo e definitivo complemento para a bruxa de plástico: urnas funerárias para a Barbie. Por vezes o feitiço só se quebra com o assassinato da feiticeira - por bonitinha que ela seja...
 10/1/94

(ALVES, Rubem. A Barbie. In: Teologia do cotidiano. São Paulo, Olhos d'Água, 1994. pp. 21-25) 

É claro que esse texto é para quem prefere poesia. Mas para quem prefere dados concretos, seguem alguns bem interessantes.


quinta-feira, 24 de julho de 2014

UMA SEMANA COM RUBEM ALVES - QUARTO DIA - ESTÓRIAS DE QUEM GOSTA DE ENSINAR


Em tempo de crianças que são como pequenos adultos, com a agenda cheia de atividades que servirão para quando ela crescer (pelo menos é nisso que os pais acreditam), e que vivem estressadas, é sempre bom lembrar que as crianças precisam brincar!




DA INUTILIDADE DA INFÂNCIA (RUBEM ALVES)

O pai orgulhoso e sólido olha para o filho saudável e imagina o futuro.
- Que é que você vai ser quando crescer?
Pergunta inevitável, necessária, previdente, que ninguém questiona.
- Ah! Quando eu crescer, acho que vou ser médico!

A profissão não importa muito, desde que ela pertença ao rol dos rótulos respeitáveis que um pai gostaria de ver colados ao nome do seu filho (e ao seu, obviamente)... Engenheiro. Diplomata, Advogado. Cientista.
Imagino um outro pai, diferente, que não pode fazer perguntas sobre o futuro. Pai para quem o filho não é uma entidade que “vai ser quando crescer”, mas que simplesmente é, por enquanto... É que ele sofre de leucemia e, por isto mesmo, não vai ser nem médico, nem mecânico e nem ascensorista. Que é que seu pai lhe diz? Penso que o pai, esquecido de todos “os futuros possíveis e gloriosos” e dolorosamente consciente da presença física, corporal da criança, se aproxima dela com toda a ternura e lhe diz: “Se tudo correr bem, iremos ao jardim zoológico no próximo domingo...”
É, são duas maneiras de se pensar a vida de uma criança.
São duas maneiras de se pensar aquilo que fazemos com uma criança.
Eu me lembro daquelas propagandas curtinhas que se fizeram na televisão, por ocasião do ano da criança deficiente, para provar que ainda havia alguma esperança, para dizer que alguma coisa estava sendo feita. E apareciam lá, na tela, as crianças e adolescentes. Cada uma excepcional a seu modo, desde síndrome de Down até cegueira, e aquilo que nós estávamos fazendo com elas... Ensinando, com muito amor, muita paciência. E tudo ia bem até que aparecia o ideólogo da educação dos excepcionais para explicar que, daquela forma, esperava-se que as crianças viessem a ser úteis, socialmente. E fiquei a me perguntar se não havia uma pessoa sequer que dissesse coisa diferente, que aquelas escolas não eram para transformar cegos em fazedores de vassouras, nem para automatizar os mongolóides para que aprendessem a pregar botões sem fazer confusão... Será que é isto? Sou o que faço? Ali estavam crianças excepcionais, não-seres, que virariam seres sociais e receberiam o reconhecimento público se, e somente se, fossem transformados em meios de produção. Não encontrei nem um só que dissesse:
Através desta coisa toda que estamos fazendo esperamos que as crianças sejam felizes, dêem muitas risadas, descubram que a vida é boa... Mesmo um excepcional pode ser feliz. Se uma borboleta, se um pardal e se uma ignorada rãzinha podem encontrar alegria na vida, por que não estas crianças, só porque nasceram um pouco diferentes...?

Voltamos ao pai e ao seu filhinho leucêmico.
Que temos a lhes dizer?
Que tudo está perdido? Que o seu filho é um não-ser porque nunca chegará a ser útil socialmente? E ele nos responderá:
Mas não pode ser... Sabe? Ele dá risadas. Adora o jardim zoológico. E está mesmo criando uns peixes num aquário. Você não imagina a alegria que ele tem quando nascem os filhotinhos. De noite nós nos sentamos e conversamos. Lemos estórias. Vemos figuras de arte, ouvimos música. Rezamos... Você acha que tudo isto é inútil? Que tudo isto não faz uma pessoa? Que uma criança não é, que ela só será depois que crescer, que ela só será depois de transformada em meio de produção?

E eu me pergunto sobre a escola... Que crianças ela toma pelas mãos...
Claro, se a coisa importante é a utilidade social temos que começar reconhecendo que a criança é inútil, um trambolho. Como se fosse uma pequena muda de repolho, bem pequena, que não serve nem para salada e nem para ser recheada, mas que, se propriamente cuidada, acabará por se transformar num gordo e suculento repolho e, quem sabe, um saboroso chucrute? Então olharíamos para a criança não como quem olha para uma vida que é um fim em si mesma, que tem direito ao hoje pelo hoje... Ora, a muda do repolho não é um fim. É um meio. O agricultor ama, nas mudinhas de repolho, os caminhões de cabeças gordas que ali se encontram escondidas e prometidas. Ou, mais precisamente, os lucros que delas se obterá... utilidade social.
Reconheçamos: as crianças são inúteis...
Entre nós inutilidade é nome feio. Já houve tempo, entretanto, em que ela era a marca de uma virtude teologal. Duvidam? Invoco Santo Agostinho, mestre venerável que declara em De Doctrina Christiana: “Que há coisas para serem usufruídas, e outras para serem usadas”. E ele acrescenta: “Aquelas que são para serem usufruídas nos tornam bem-aventurados”. Coisas que podem ser usadas são úteis: são meios para um fim exterior a elas. Mas as coisas que são usufruídas nunca são meio para nada. São fins em si mesmas. Elas nos dão prazer. São inúteis.
Uma sonata de Scarlatti é útil? E um poema? E um jogo de xadrez? Ou empinar papagaios?
Inúteis.
Ninguém fica mais rico.
Nenhuma dívida é paga.
Por que nos envolvemos nestas atividades, se lhes falta a seriedade do pragmatismo responsável e os resultados práticos de toda atividade técnica? É que, muito embora não produzam nada, elas produzem o prazer.
O primeiro pai fazia ao filho a pergunta da utilidade: “Qual o nome do meio de produção em que você deseja ser transformado?” O segundo, impossibilitado de fazer tal pergunta, descobriu um filho que nunca descobriria de outra forma: “Vamos brincar juntos, no domingo?”
E as nossas escolas? Para quê?
Conheço um mundo de artifícios de psicologia e de didática para tornar a aprendizagem mais eficiente. Aprendizagem mais eficiente: mais sucesso na transformação do corpo infantil brincante no corpo adulto produtor. Mas para saber se vale a pena seria necessário que comparássemos os risos das crianças com os risos dos adultos, e comparássemos o sono das crianças com o sono dos adultos. Diz a psicanálise que o projeto inconsciente do ego, o impulso que vai empurrando a gente pela vida afora, esta infelicidade e insatisfação indefinível que nos faz lutar para ver se, depois, num momento do futuro, a gente volta a rir. Sim, diz a psicanálise que este projeto inconsciente é a recuperação de uma experiência infantil de prazer. Redescobrir a vida como brinquedo. Já pensaram no que isto implicaria? É difícil. Afinal de contas as escolas são instituições dedicadas à destruição das crianças. Algumas, de forma brutal. Outras, de forma delicada. Mas em todas elas se encontra o moto:
A criança que brinca é nada mais que um meio para o adulto que produz.


(ALVES, Rubem. Da inutilidade da infância. In: Estórias de quem gosta de ensinar. 13ed. São Paulo, Cortez, 1989. pp. 5-8)

quarta-feira, 23 de julho de 2014

UMA SEMANA COM RUBEM ALVES: TERCEIRO DIA - SOBRE DEUS

Sou uma pessoa profundamente religiosa. Mas cedo me insurgi contra a vontade dos homens de colocar Deus no cabresto. Religiões que me falam de um Deus estranho, vaidoso, negociador, vingativo. 
Eu só acredito no Deus que é Amor. E ponto final.





SOBRE DEUS (RUBEM ALVES)

Alguém me disse que gosta das coisas que eu escrevo, mas não gosta do que penso sobre Deus. Não se aflijam. Nossos pensamentos sobre Deus não fazem a menor diferença. Nós nos afligimos com aquilo que os outros pensam sobre nós. Pois eu lhes digo que Deus não dá a mínima. Ele é como uma fonte de água cristalina. Através dos séculos os homens têm sujado essa fonte com seus malcheirosos excrementos intelectuais. Disseram que ele tem uma câmara de torturas chamada inferno onde coloca aqueles que lhe desobedecem, por toda a eternidade, e ri de felicidade contemplando o sofrimento sem remédio dos infelizes.
Disseram que ele tem prazer em ver o sofrimento dos homens, tanto assim que os homens, com medo, fazem as mais absurdas promessas de sofrimento e autoflagelação para obter o seu favor. Disseram que ele se compra: em ouvir repetições sem fim de rezas, como se ele tivesse memória fraca e a reza precisasse ser repetida constantemente para que ele não se esqueça. Em nome de Deus os que se julgavam possuidores das ideias certas fizeram morrer nas fogueiras milhares de pessoas.
Mas a fonte de água cristalina ignora as indignidades que os homens lhe fizeram. Continua a jorrar água cristalina, indiferente àquilo que os homens pensam dela. Você conhece a estória do galo que cantava para fazer o sol nascer? Pois havia um galo que julgava que o sol nascia porque ele cantava. Toda madrugada batia as asas e proclamava para todas as aves do galinheiro: “Vou cantar para fazer o sol nascer”. Ato contínuo subia no poleiro, cantava e ficava esperando. Aí o sol nascia. E ele então, orgulhoso, dizia: “Eu não disse?” Aconteceu, entretanto, que num belo dia o galo dormiu demais, perdeu a hora. E quando ele acordou com as risadas das aves, o sol estava brilhando no céu. Foi então que ele aprendeu que o sol nascia de qualquer forma, quer ele cantasse. quer não cantasse. A partir desse dia ele começou a dormir em paz, livre da terrível responsabilidade de fazer o sol nascer.
Pois é assim com Deus. Pelo menos é assim que Jesus o descreve. Deus faz o seu sol nascer sobre maus e bons, e a sua chuva descer sobre justos e injustos. Assim não fiquem aflitos com as minhas ideias. Se eu canto não é para fazer o sol nascer. É porque sei que o sol vai nascer, independentemente do meu canto. E nem se preocupem com as suas ideias. Nossas ideias sobre Deus não fazem a mínima diferença para Ele. Fazem, sim, diferença para nós. Pessoas que têm ideias terríveis sobre Deus não conseguem dormir direito, são mais suscetíveis de ter infartos e são intolerantes. Pessoas que têm ideias mansas sobre Deus dormem melhor, o coração bate tranquilo e são tolerantes.
Fui ver o mar. Gosto do mar quando a praia está vazia da perturbação humana. Nas tardes, de manhã bem cedo. A areia lisa, as ondas que quebram sem parar, a espuma, o horizonte sem fim. Que grande mistério é o mar! Que cenários fantásticos estão no seu fundo, longe dos olhos! Para sempre incognoscível! Pense no mar como uma metáfora de Deus. Se tiver dificuldades leia a Cecília Meireles, Mar absoluto. Faz tempo que, para pensar sobre Deus, eu não leio os teólogos; leio os poetas. Pense em Deus como um oceano de vida e bondade que nos cerca. Romain Rolland descrevia seu sentimento religioso como “sentimento oceânico”. Mas o mar, cheio de vida, é incontrolável. Algumas pessoas têm a ilusão de que é possível engarrafar Deus. Frequentemente as religiões se proclamam como fábricas de engarrafar Deus. Quem tem Deus engarrafado tem o poder. Como na estória de Aladim e a lâmpada mágica. Nesse Deus eu não acredito. Não tenho respeito por um Deus que se deixa engarrafar. Prefiro o mistério do mar... Algumas pessoas não gostam do que penso sobre Deus porque elas deixam de acreditar que suas garrafas religiosas contenham Deus...


(ALVES, Rubem. Sobre Deus. In: Coisas da alma. São Paulo, Paulus, 2001. pp. 7-10)


terça-feira, 22 de julho de 2014

UMA SEMANA COM RUBEM ALVES - SEGUNDO DIA: CONVERSAS COM QUEM GOSTA DE ENSINAR

Escolhi alguns trechos do primeiro capítulo do livro: Conversas Com Quem Gosta de Ensinar, intitulado Sobre Jequitibás e Eucaliptos - Amar, que mais me emocionaram quando o li, lá pelos idos do final da década de 80. Nesse tempo, formada em Administração e trabalhando na área por imposição familiar e também da vida que me exigia trabalhar para ajudar no sustento da casa, não era feliz. No ano de 1989, finalmente eu sabia que iria realizar meu sonho: terminar meu curso de Letras. E eu estava determinada a dar aulas na rede pública de ensino. 
Nessa época, havia muitos debates, mesmo em faculdades particulares como a que eu frequentava, em que se pensava a profissão de professor. Saindo da ditadura militar, todos nós nos questionávamos: E agora? O que fazer para tentar reverter o quadro de trevas que se havia instalado na educação brasileira?
Não me lembro como esse livro parou em minhas mãos. Mas foi ele que me deu as respostas. As minhas respostas, aquelas que calaram fundo na minha alma.

Sobre Jequitibás e Eucaliptos - Amar (Rubem Alves)

Foi o tema que me deram, “a formação do educador”, que me fez passar de tropeiros a caixeiros. Todas, profissões extintas ou em extinção.
Educadores, onde estarão? Em que covas terão se escondido? Professores, há aos milhares. Mas professor é profissão, não é algo que se define por dentro, por amor.
Educador, ao contrário, não é profissão: é vocação. E toda vocação nasce de um grande amor, de uma grande esperança.
Profissões e vocações são como plantas. Vicejam e florescem em nichos ecológicos, naquele conjunto precário de situações que as tornam possíveis e - quem sabe? – necessárias. Destruído esse habitat, a vida vai se encolhendo, murchando, fica triste, mirra, entra para o fundo da terra, até sumir.
Com o advento da indústria, como poderia o artesão sobreviver? Foi transformado em operário de segunda classe, até morrer de desgosto e saudade. O mesmo com os tropeiros, que dependiam das trilhas estreitas e das solidões, que morreram quando o asfalto e o automóvel chegaram. Destino igualmente triste teve o boticário, sem recursos para sobreviver num mundo de remédios prontos. Foi devorado no banquete antropológico das multinacionais. (...)
E o educador? Que terá acontecido com ele? Existirá ainda o nicho ecológico que torna possível a sua existência? Resta-lhe algum espaço? Será que alguém lhe concede a palavra ou lhe dá ouvidos? Merecerá sobreviver? Tem alguma função social ou econômica a desempenhar?
Uma vez cortada a floresta virgem, tudo muda. É bem verdade que é possível plantar eucaliptos, essa raça sem-vergonha que cresce depressa, para substituir as velhas árvores seculares que ninguém viu nascer nem plantou.
Para certos gostos, fica até mais bonito: todos enfileirados, em permanente posição de sentido, preparados para o corte. E para o lucro. Acima de tudo, vão-se os mistérios, as sombras não penetradas e desconhecidas, os silêncios, os lugares ainda não visitados. O espaço se racionaliza sob a exigência da organização. Os ventos não mais serão cavalgados por espíritos misteriosos, porque todos eles só falarão de cifras, financiamentos e negócios.
Que me entendam a analogia.
Pode ser que educadores sejam confundidos com professores, da mesma forma como se pode dizer: jequitibá e eucalipto, não é tudo árvore, madeira? No final, não dá tudo no mesmo?
Não, não dá tudo no mesmo, porque cada árvore é a revelação de um habitat, cada uma delas tem cidadania num mundo específico. A primeira, no mundo do mistério, a segunda, no mundo da organização, das instituições, das finanças. Há árvores que têm uma personalidade, e os antigos acreditavam mesmo que possuíam uma alma. É aquela árvore, diferente de todas, que sentiu coisas que ninguém mais sentiu, Há outras que são absolutamente idênticas umas às outras, que podem ser substituídas com rapidez e sem problemas.
Eu diria que os educadores são como as velhas árvores. Possuem uma frase, um nome, uma “estória” a ser contada. Habitam um mundo em que o que vale é a relação que os liga aos alunos, sendo que cada aluno é uma “entidade” sui generis, portador de um nome, também de uma “estória”, sofrendo tristezas e alimentando esperanças. E a educação é algo para acontecer neste espaço invisível e denso, que se estabelece a dois. Espaço artesanal.
Mas professores são habitantes de um mundo diferente, onde o “educador” pouco importa, pois o que interessa é um “crédito” cultural que o aluno adquire numa disciplina identificada por uma sigla, sendo que, para fins institucionais, nenhuma diferença faz aquele que a ministra. Por isto mesmo professores são entidades “descartáveis”, da mesma forma como há canetas descartáveis, coadores de café descartáveis, copinhos plásticos de café descartáveis.
De educadores para professores realizamos o salto de pessoa para funções.
É doloroso, mas é necessário reconhecer que o mundo mudou. As florestas foram abatidas. Em seu lugar, eucaliptos. (...)
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Articula-se aqui um mundo a partir da interioridade. Com o advento do utilitarismo, entretanto, tudo se alterou. A pessoa passou a ser definida pela sua produção: a identidade é engolida pela função. E isto se tomou tão arraigado que, quando alguém nos pergunta o que somos, respondemos inevitavelmente dizendo o que fazemos. Com esta revolução instaurou-se a possibilidade de se gerenciar e administrar a personalidade, pois que aquilo que se faz e se produz, a função, é passível de medição, controle, racionalização. A pessoa praticamente desaparece, reduzindo-se a um ponto imaginário em que várias funções são amarradas.
E isto que eu quero dizer ao afirmar que o nicho ecológico mudou. O educador, pelo menos o ideal que minha imaginação constrói, habita um mundo em que a interioridade faz uma diferença, em que as pessoas se definem por suas visões, paixões, esperanças e horizontes utópicos. O professor, ao contrário, é funcionário de um mundo dominado pelo Estado e pelas empresas. É uma entidade gerenciada, administrada segundo a sua excelência funcional, excelência esta que é sempre julgada a partir dos interesses do sistema. Frequentemente o educador é mau funcionário, porque o ritmo do mundo do educador não segue o ritmo do mundo da instituição. (...)
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O fato é que não dispomos de critérios para avaliar esta coisa imponderável a que se dá o nome de educação. E é aqui que se encontra o problema: se não dispomos sequer de critérios para pensar institucionalmente a educação, como pensar o educador? A formação do educador: não existirá aqui uma profunda contradição? Plantar carvalhos? Como, se já se decidiu que somente eucaliptos sobreviverão?
Plantar tâmaras, para colher frutos daqui a cem anos? Como, se já se decidiu que todos teremos de plantar abóboras, a serem colhidas daqui a seis meses?
O educador é um ausente. Nosso espaço funcional, gerenciado, torna possível falar sobre funcionários definidos pela instituição. Mas ele não permite que se fale sobre coisa alguma que se move num espaço definido pela liberdade. O educador tem, assim, o estatuto de um conceito utópico, de existência prática proibida e, por isto mesmo, existência teórica impossível. E, é por isto que as ciências silenciaram sobre ele. (...)
No entanto, continuamos a falar sobre o educador, a nos perguntar sobre sua formação - como se ele fosse uma entidade entre outras. Não é curioso isto - que continuemos a falar assim, a despeito de todas as proibições? Proibição prática, proibição teórica... Curioso que esta fantasia continue a nos assombrar e a nos inspirar como visão, talvez, daquilo que poderíamos ser se não tivéssemos sido domesticados.
Aqui, talvez, uma ciência pouco ortodoxa possa vir em nosso auxílio, para nos ajudar a compreender este discurso sobre possibilidades ainda não realizadas, que só se articula pela mediação da imaginação e da fantasia. Discurso perigoso e amedrontador, que tem em uma de suas extremidades o louco e na outra o poeta. Na verdade, que tênues são os limites que os separam porque, cada um, ao seu modo, se recusa a falar sobre o real, preferindo antes anunciar o ausente. É evidente que o pensamento marcado pela objetividade bruta, e que se esgota nos objetos apresentados à sua inspeção, recuará com pavor e desprezo, pois ele tem o seu lugar nas opções que triunfaram e nos fatos que se impuseram, enquanto o discurso do imaginário explora o real do ponto de vista dc suas ausências, das possibilidades que fracassaram, não por serem menos belas, mas por serem mais fracas, mas que continuam presentes sob a forma de promessas, esperanças, fantasias, utopias... loucura.
“Aqui a palavra não é a expressão de uma coisa, mas antes da ausência desta coisa, palavra que faz com que as coisas desapareçam, impondo em nós o sentimento de uma ausência universal”. (Maurice Blanchot)
É a ciência pouco ortodoxa da psicanálise que nos informa que o discurso sobre as ausências, discursos dos sonhos, das esperanças, tem o seu lugar na interioridade de nós mesmos, explodindo, emergindo, irrompendo sem permissão, para invadir e embaraçar o mundo tranquilo, racional e estabelecido de nossas rotinas institucionais. Seria possível, então, compreender que a polaridade entre educadores e professores não instaura uma dicotomia entre duas classes de pessoas, umas inexistentes e utópicas, outras existentes e vulgares, mas antes uma dialética que nos racha a todos, pelo meio, porque todos somos educadores e professores, águias e carneiros, profetas e sacerdotes, reprimidos e repressores.
Não é por acidente, então, que os professores sejam aqueles que sonham com os educadores, e os funcionários tenham visões de liberdade, e os animais domésticos façam poemas e tenham loucuras sobre o selvagem que habita cada um deles. Não se trata de formar o educador, como se ele não existisse. Como se houvesse escolas capazes de gerá-lo, ou programas que pudessem trazê-lo à luz. Eucaliptos não se transformarão em jequitibás, a menos que em cada eucalipto haja um jequitibá adormecido. O que está em jogo não é uma técnica, um currículo, uma graduação ou pós-graduação.
Nenhuma instituição gera aqueles que tocarão as trombetas para que seus muros caiam.
O que está em jogo não é uma administração da vocação, como se os poetas, profetas, educadores, pudessem ser administrados.
Necessitamos de um ato mágico de exorcismo. Nas histórias de fadas é um ato de amor, um beijo, que acorda a Bela Adormecida de seu sono letárgico, ou o príncipe transformado em sapo.
Diz-nos Freud que a questão decisiva não é a compreensão intelectual, mas um ato de amor. São atos de amor e paixão que se encontram nos momentos fundadores de mundos, momentos em que se encontram revolucionários, os poetas, os profetas, os videntes. E depois, quando se esvai o ímpeto criador, quando as águas correntes se transformam primeiro em lagoas, depois em charcos, que se estabelece a gerência, a administração, a burocracia, a rotina, a racionalização, a racionalidade.
A questão não é gerenciar o educador. É necessário acordá-lo. E, para acordá-lo, uma experiência de amor é necessária. Já sei a pergunta que me aguarda: - E qual é a receita para a experiência de amor, de paixão? Como se administram tais coisas? Que programas se constroem?
Aí eu tenho de ficar em silêncio, porque não tenho resposta alguma.
Na verdade, quando nos propomos tais perguntas estamos, realmente, nos questionando: Por que não ficamos grávidos e grávidas com o educador? Por que não somos consumidos pela paixão, por mais irracional que ela seja?
Ah! Como a paixão é doce. Somente os apaixonados sabem viver e morrer. Somente os apaixonados, como D. Quixote, vislumbram batalhas e se entregam a elas. A paixão é o segredo do sentido da vida. E que outra questão mais importante poderá haver? Dizia Camus que o único problema filosófico realmente sério é "julgar-se a vida é digna ou não de ser vivida”.
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Em Gabriela, Cravo e Canela há um momento em que a filha de um coronel diz à sua mãe que pretendia casar-se com um professor. Ao que a mãe retruca, numa clássica lição de realismo político: “E o que é um professor, na ordem das coisas? Que tem ensino a ver com poder? Como podem as palavras se comparar com as armas? Por acaso a linguagem já destruiu e já construiu mundos?”
Parece que o destino do educador se dependura na resposta a estas questões. Se fazemos a nossa aposta em que o mundo humano é regido por leis idênticas àquelas que movem o universo físico, se acreditamos que a sociedade tem o estatuto de coisa, se aceitamos que o futuro não passa por dentro do que pensamos e do que dizemos, em resumo, se não arriscamos tudo na confiança de que a palavra tem um poder criador, restamos então uma única opção: o silêncio. É muito revelador que Marx, para destruir os hegelianos de esquerda, que acreditavam que também as palavras entram na argamassa com que a sociedade é construída, o tivesse feito justamente com o auxílio de palavras: A ideologia alemã. Se a crítica deixa as coisas como estão, por que fazer a crítica da crítica? Se as palavras são vazias de poder, por que usar tantas palavras para discutir o poder? Não, o fato é que todos aqueles que ainda têm a ousadia de falar e escrever, acreditam, ainda que de forma tênue, que o seu falar faz uma diferença.
Isto é de crucial importância para o educador, e desta crença depende o seu sono e o seu acordar. Porque, com que instrumentos trabalha o educador? Com a palavra. O educador fala. Mesmo quando o seu trabalho inclui as mãos, como o mestre que ensina o aprendiz a moldar a argila, ou o cientista ensina o estudante a manejar o microscópio, todos os seus gestos são acompanhados de palavras. São as palavras que orientam as mãos e os olhos.
Vocês, que acompanharam o documentário Raízes Negras ou leram o livro, se lembrarão de que, quando Kunta Kinte foi vendido a um dono, um novo nome lhe foi dado. E isto não foi acidente. O primeiro ato de domínio exige que o dominado esqueça o seu nome, perca a memória do seu passado, não mais se lembre de sua dignidade e aceite os nomes que o senhor impõe. A perda da memória é um evento escravizador. É por isto mesmo que a mais antiga tradição filosófica do mundo ocidental afirma que o nosso destino depende de nossa capacidade e vontade de recuperar memórias perdidas. Na linha que vai de Platão a Freud, o evento libertador exige que sejamos capazes de dar nomes ao nosso passado. A lembrança é uma experiência transfiguradora e revolucionária. Tanto assim que Marcuse chega a se referir à função subversiva da memória. Por mais curioso e paradoxal, parece que o mais distante é aquilo que está mais próximo do nosso futuro.
E agora eu convidaria esta pessoa singular, que só tem nas mãos a palavra, a um ato de exorcismo e quebra de feitiço. É necessário lembrar, recuperar a memória dos momentos em que o mundo foi instaurado. Lá, quando a criança, com seus olhos virgens, olha para o todo amorfo e inominável ao seu redor, e a desordem gira em torno dela, até que a palavra lhe é dirigida, dando nomes, impondo ordem, fazendo nascer um mundo. “No princípio era a Palavra...” Não qualquer palavra, porque as palavras eficazes são aquelas que partem daqueles que são os outros significativos, aqueles que têm, com a criança, um destino comum, aqueles para quem a criança importa, porque ela será uma companheira numa mesma habitação, seja casa, seja vila, seja jornada... Jornadas também são habitações. E ali descobrimos que “cada pessoa que entra em contato com a criança é um professor que incessantemente lhe descreve o mundo, até o momento em que a criança é capaz de perceber o mundo tal como foi descrito” (Carlos Castañeda em Viagem a Ixtlan): professores que não sabem que são professores, sem créditos em didática nem conhecimento de psicologia. Só dispõem da palavra e do destino comum. E sem saber como, e sem ter nenhuma teoria sobre como é que as coisas acontecem, os mundos são criados.
“E o que é um professor, na ordem das coisas?”
Talvez que um professor seja um funcionário das instituições que gerenciam lagoas e charcos, especialista em reprodução, peça num aparelho ideológico de Estado. Um educador, ao contrário, é um fundador de mundos, mediador de esperanças, pastor de projetos.
Não sei como preparar o educador. Talvez que isto não seja nem necessário, nem possível... É necessário acordá-lo. E aí aprenderemos que educadores não se extinguiram como tropeiros e caixeiros. Porque, talvez, nem tropeiros nem caixeiros tenham desaparecido, mas permaneçam como memórias de um passado que está mais próximo do nosso futuro que o ontem. Basta que os chamemos do seu sono, por um ato de amor e coragem. E talvez, acordados, repetirão o milagre da instauração de novos mundos.


ALVES, Rubem. Sobre jequitibás e eucaliptos – amar. In: Conversas com quem gosta de ensinar. 23ed. São Paulo, Cortez, 1989. (pp. 11-30).






domingo, 20 de julho de 2014

UMA SEMANA DE RUBEM ALVES - PRIMEIRO DIA: TÊNIS OU FRESCOBOL

Essa é minha singela homenagem a quem foi tão importante na minha vida. Durante essa semana postarei alguns dos meus textos favoritos de Rubem Alves. Aqui vai o primeiro!
TÊNIS X FRESCOBOL
Depois de muito meditar sobre o assunto, conclui que os casamentos são de dois tipos: há casamentos do tipo tênis e do tipo frescobol. Os casamentos do tipo tênis são uma fonte de raiva e ressentimentos e terminam sempre mal. Os casamentos do tipo frescobol são uma fonte de alegria e têm a chance de vida longa.
Explico-me. Para começar, uma afirmação de Nietzche , com a qual concordo inteiramente. Dizia ele : "Ao pensar sobre a possibilidade de casamento, cada um deveria fazer a seguinte pergunta: Crê que seria capaz de conversar com prazer com esta pessoa até a sua velhice ?” Tudo o mais no casamento é transitório, mas as relações que desafiam o tempo são aquelas construídas sobre a arte de conversar.
Nos contos das “Mil e uma noites”, Sherazade sabia disso. Sabia que os casamentos baseados nos prazeres da cama são decapitados pela manhã, terminam em separação, pois os prazeres do sexo se esgotam rapidamente, terminam com a morte, como no filme “O Império dos sentidos”. Por isso, quando o sexo já está estava morto na cama, e o amor não mais podia dizer através dele, Sherazade o ressuscitava pela magia da palavra. Começava com uma longa conversa sem fim, que deveria durar mil e uma noites. O sultão se calava e escutava as suas palavras como se fossem música. A música dos sons ou da palavra – é a sexualidade sob a forma da eternidade; é o amor que ressuscita sempre depois de morrer. Há carinhos que se fazem com o corpo e carinhos que se fazem com as palavras. Não é ficar repetindo o tempo todo “eu te amo, eu te amo “.

O tênis é um jogo feroz. Seu objetivo é derrotar o adversário. E a sua derrota se revela no seu erro: o outro foi incapaz de devolver a bola. Joga-se tênis para fazer o outro errar. O bom jogador é aquele que tem a exata noção do ponto fraco do seu adversário, e é justamente para aí que ele vai dirigir a sua cortada – palavra muito sugestiva que indica seu objetivo sádico, que é cortar, interromper, derrotar. O prazer do tênis se encontra, portanto, justamente no momento em que o jogo não pode mais continuar, porque o adversário foi colocado fora do jogo. Termina sempre com a alegria de um e a tristeza do outro.

O frescobol se parece muito com o tênis : dois jogadores, duas raquetes e uma bola. Só que, para o jogo ser bom, é preciso que nenhum dos dois perca. Se a bola veio meio torta, a gente sabe que não foi de propósito e faz o maior esforço do mundo para devolvê-la e não há ninguém derrotado. Aqui ou os dois ganham ou ninguém ganha. E ninguém fica feliz quando o outro erra, pois o que se deseja é que ninguém erre. O erro de um, no frescobol é como ejaculação precoce: um acidente lamentável que não deveria ter acontecido, pois o gostoso mesmo é aquele ir e vir, ir e vir, ir e vir…

E o que errou pede desculpas, e o que provocou o erro se sente culpado. Mas não tem importância: começa-se de novo este delicioso jogo em que ninguém marca pontos. A bola são as nossas fantasias, irrealidade, sonhos sob a forma de palavras. Conversar é ficar batendo sonho para lá , sonho para cá. Sonho para lá, sonho para cá…

Mas há casais que jogam com os sonhos como se jogassem tênis. Ficam à espera do momento certo para a cortada. O jogo de tênis é assim: recebe-se o sonho do outro para destruí-lo, arrebentá-lo como bolha de sabão. O que busca é ter razão e o que se ganha é o distanciamento. Aqui , quem ganha, sempre perde.

Já no frescobol é diferente. O sonho do outro é um brinquedo que deve ser preservado, pois sabe-se que, se é sonho é coisa delicada, do coração. Assim cresce o amor. Ninguém ganha para que os dois ganhem. E se deseja então, que o outro viva sempre, eternamente, para que o jogo nunca tenha fim…


sábado, 19 de julho de 2014

CARTA A RUBEM ALVES



As almas dos velhos e das crianças brincam no mesmo tempo. As crianças ainda sabem aquilo que os velhos esqueceram e têm de aprender de novo: que a vida é brinquedo que para nada serve, a não ser para a alegria! (Rubem Alves)



Você se foi, meu querido amigo Rubem Alves. E o meu mundo ficou triste, muito triste...

Chamo-o de amigo, embora não tenhamos nos conhecido em pessoa, mas uma tal comunhão de ideias e sentimentos só pode vir do reconhecimento que somos da "mesma tribo". Somos parceiros, os jovens diriam que somos "brothers"... Ah, sim, uso o presente porque a morte não desfaz a amizade, não é mesmo?

Deveria ter lhe escrito antes, quando essas linhas pudessem chegar a você, mas a timidez não me permitiu a tentativa de chegar mais perto, de dividirmos o mesmo espaço. Mas lhe escrever, mesmo que tardiamente, era imprescindível para mim.

Queria muito lhe dizer que são seus alguns dos textos mais significativos da minha vida: em Conversas com Quem Gosta de Ensinar, me descobri jequitibá; em Histórias para Quem Gosta de Ensinar, entendi que a Ciência tem seus hábitos alimentares e que o país dos dedos gordos está logo ali na esquina; em Coisas da Alma, conversamos eu e você sobre o inferno e a salvação da nossa alma; em Coisas que Dão Alegria, você me fez entender quanto pode sofrer um beija-flor que vive entre urubus; em Teologia do Cotidiano, você me contou um segredo: que a Barbie, na verdade, não é uma boneca, mas uma bruxa; em Coisas do Amor, compreendi que a vida é uma bifurcação em que ambos os caminhos são difíceis; em O Retorno e Terno, você falou para mim de relacionamentos que se jogam como o frescobol; em Se Eu Pudesse Viver Minha Vida Novamente, enfim, vimos juntos que é chegado o tempo da bendita inutilidade... Tantas coisas aprendi com você, meu amigo Rubem Alves.

Você escreveu um dia: "Quando eu morrer, minha memórias vão se perder. Mas não quero que se percam. Tenho de dá-las para alguém que tome conta delas. Aí me vem a aflição por escrever. Quando escrevo, estou lutando contra a morte. A morte das coisas que meu amor ajuntou e que vão se perder quando eu morrer."

Meu querido amigo, também escrevo essa carta para não deixar se perder toda beleza que seus textos me despertaram, tudo que aprendi com você. Obrigada por todo o seu carinho para comigo, para conosco, para com todos os seus leitores que puderam compartilhar de suas ideias, seus pensamentos, sua poesia.

domingo, 11 de maio de 2014

Gostei de NOÉ e não gostei de HOMEM-ARANHA 2

Assisti aos dois filmes no final de semana passado. Confesso que fui meio que de má-vontade VER “Noé”. Só fui ao “Noé” porque fui arrastada por um amigo que não queria ver o filme sozinho. Já ao “Homem-Aranha 2”, fui por curiosidade, já que não havia visto o primeiro do “reboot”, mas tinha gostado muito da primeira trilogia.
Surpreendentemente, gostei muito mais de “Noé”, do que do “Homem-Aranha 2”. É isso mesmo. Eu explico.
O que me atrai num filme? Histórias intrigantes, bem contadas num roteiro inteligente, utilizando-se de bons atores.


Assim, sendo bem sincera, esse “Homem-Aranha 2”, para mim, é um filme “teen”, turbinado por uma avalanche de efeitos especiais. No caso dos protagonistas Andrew Garfield (Homem-Aranha), Emma Stone (Gwen Stacy) e Dane DeHaan (Harry Osborn), as interpretações são bem regulares, sofríveis em alguns momentos. Sem querer ser saudosista, Tobey Maguire, Kirsten Dunst e James Franco apresentam interpretações bem mais convincentes nos mesmos papéis. Já quanto aos vilões, Jamie Foxx (Electro) segura o filme na maior parte do tempo e Paul Giamatti (Rhino) é totalmente desperdiçado, com uma interpretação apagada por conta do próprio roteiro, creio eu. O enredo, no que pese o fato de ser mais próximo dos quadrinhos (inclusive quanto ao destino da “mocinha”), o que pode satisfazer os fãs mais fervorosos, me pareceu mal desenvolvido pelo diretor Marc Webb (de “500 Dias com Ela”). Mesmo sendo um história basicamente de ação, o Homem-Aranha dos quadrinhos tem um lado muito interessante como personagem, suas contradições, seus conflitos internos, que poderiam ser mais bem explorados, mas que deram lugar a sequências de rasantes entre prédios e piadas fraquinhas como a do rosto sujo e a chaminé... Enfim, achei o filme dispensável.


E “Noé”? Primeiro, quero deixar claro que minha modesta análise não passa nem perto da questão de sua fidelidade ou não à Bíblia. É um filme, e como tal, pode desenvolver a história que quiser. “Noé” não é um filme bíblico. Sua “filiação” é muito mais próxima dos filmes-catástrofe (“Presságio”, “Twister”, “O Dia Depois de Amanhã”, por exemplo). É claro que se o diretor Darren Aronofsky (de “Cisne Negro” e “Réquiem Para Um Sonho”) tivesse chamado o filme de “Dilúvio” e trocado o nome de Noé para Joãozinho, talvez ele pudesse se poupar um pouco da ira que despertou em grupos religiosos pelo mundo ocidental afora. Mas talvez essa reação, já esperada, faça parte da propaganda. Vai saber...
Enfim, falando do filme “Noé”. Primeiro, Darren Aronofsky se utiliza de atores obviamente bem mais talentosos: Russell Crowe (Noé), Jennifer Connelly (Naameh), Emma Watson (Ila), Anthony Hopkins (Mathusalem), Nick Nolte (Samyaza) já são atores tarimbados. Logan Lerman (Ham) é conhecido pela interpretação bem convincente em “As Vantagens de Ser Invisível” (em que contracena com Emma Watson) e Douglas Booth (Shem) é o único dentre os protagonistas que está iniciando sua carreira. E todos estão muito bem nos papéis que representam.
Mas o que mais me interessou foi a forma como as contradições e conflitos do enredo criado por ele foram representados. A personagem interpretada por Ray Winstone, o chefe dos homens, faz algumas das perguntas mais interessantes do filme: Por que Deus renega sua criação, se o homem foi criado a sua semelhança? Por que esses homens que trazem o sinal de Caim têm seu destino traçado pelo pecado de seu ancestral? Por que matar a todos eles, mas salvar Noé e sua família? Noé não é também um homem? 
Já Noé traz outras questões complementares: Qual a sua verdadeira missão? Ele tem o direito de ser poupado? Deixar as pessoas morrerem é uma atitude digna? Por outro lado, não seria melhor para a criação, para o planeta, se simplesmente o homem deixasse de existir? O sacrifício dele e de sua família não deixaria o resto do planeta a salvo?
Nesse sentido, para mim, Noé deixa de ser apenas o “escolhido”, para ser um homem em profundidade. Ao mesmo tempo, aqueles que Deus considera indignos de continuar vivendo também ganham uma dimensão humana. Em tempo de polarização, em que quem comete um delito grave, hediondo, deixa de ser considerado um ser humano, sendo desumanizado nas cadeias, enquanto aqueles que se acham os “escolhidos” para fazer justiça acabam por agir de forma tão bárbara quanto aqueles a quem eles pretendem “justiçar”, essas questões me parecem bastante pertinentes.
Agora, podem jogar as pedras... :)

sábado, 1 de março de 2014

12 ANOS DE ESCRAVIDÃO, 16 DIAS DE PRISÃO: DE SOLOMON NORTHUP A VINÍCIUS ROMÃO

Vinícius Romão antes da prisão
Bem, desde que começaram a surgir as notícias sobre a prisão do ator Vinícius Romão por um assalto a uma senhora na rua, próximo ao Hospital Pasteur, no Rio de Janeiro, fiquei chocada. A prisão dele é um verdadeiro circo dos horrores: ele foi preso a partir de um “reconhecimento” pela vítima, feito na rua. Sim, correspondia a seguinte descrição genérica: negro, alto, cabelo black-power. Ele não estava de posse de nenhum pertence dessa senhora. Foi preso e enviado a uma penitenciária, mantido numa cela com mais 15 detentos, sem direito a contato com a família, submetido às condições humilhantes, como o ritual de raspar os cabelos. Um rapaz formado em psicologia, ator, sem passagem pela polícia. E, pior, as instituições “competentes” levaram 16 dias para admitir seu erro e liberar o jovem, depois de uma intensa movimentação dos familiares e amigos, inclusive na mídia.
Vinícius Romão após a prisão
                   Já solto, essa semana Vinícius Romão foi ao programa “Encontro com Fátima Bernardes”. E lá eu vi Solomon Northup: um homem quebrado, sem brilho, marcado pela dor. Aquele que em 12 Anos de Escravidão, também é um negro livre, com estudos, violonista, sem passagem pela polícia, que é sequestrado, escravizado e submetido a condições humilhantes. Sua condição de homem instruído é uma maldição: é preciso “dobrá-lo”, “quebrar sua espinha”. Fazê-lo sentir-se, assumir-se como escravo. Assim como Vinícius precisa entender que é um “malfeitor”, um presidiário, um homem marcado pelo crime.

            Duas histórias reais. Solomon Northup era norte-americano e viveu no século 19. Vinícius Romão é brasileiro e vive no século 21. No entanto, ao ver o filme, vi Vinícius. Ao ver o programa na TV, vi Solomon. E ao sentir essas semelhanças no meu coração, fiquei triste. Profundamente triste.

Solomon Northup, interpretado por  Chiwetel Eliofor em 12 Anos de Escravidão
Histórias como as de Solomon não foram poucas. Como as de Vinícius Romão também não o são. Segundo relatório das Nações Unidas, 40% dos presos brasileiros é de presos provisórios e há um número assustador de detenções ilegais. Muitos desses detentos, inocentes, ficam com sequelas irreversíveis. Leia em Histórias que Assustam a ONU . 
Só desejo que o final dessas histórias sejam diferentes. Solomon Northup tentou levar seus sequestradores para um tribunal, mas não conseguiu, pois negros não podiam depor contra brancos. Espero que os responsáveis pela prisão arbitrária de Vinícius Romão respondam por seus atos junto à justiça.

domingo, 9 de fevereiro de 2014

A TOTAL INCOMPATIBILIDADE DE SER CRISTÃO E ACEITAR A DEGRADAÇÃO DE UMA PESSOA EM NOME DA JUSTIÇA

Tenho visto diversos textos pela internet afora, discutindo o ocorrido no dia 03/02/2014, no Rio de Janeiro, em que um jovem delinquente foi espancado, despido e preso a um poste por uma tranca de carro. Há discussões no âmbito legal e social, que acho extremamente pertinentes. Mas no meu caso, a pergunta que me faço repetidamente é: como ser cristão e aceitar esse fato como normal, ou mais grave, como justificável? (Deixo claro que não estou aqui a falar de instituições religiosas desse ou daquele tipo, nem excluo do debate outras crenças e outras opções como o ateísmo. Apenas não as conheço suficiente para tentar traçar um paralelo da visão cristã com as demais em minhas considerações.)

Volto, então, à pergunta: o que Cristo nos diz sobre tomar a justiça em nossas mãos e sobre a prática da violência em geral?

Jesus se depara com um apedrejamento de uma adúltera. Nesse caso, a lei está ao lado dos agressores (o que não é o caso dos agressores do jovem, posto que há todo uma legislação brasileira que criminaliza milícias e assemelhados). Cada um ali está cumprindo seu dever de cidadão, fazendo cumprir a lei (aqui se encontra algumas das justificativas de pessoas que aceitam o que ocorreu). A adúltera é uma criminosa perante a lei, sabia dos riscos que corria ao cometer seu delito, prejudicou pessoas, sujou a honra da família, desacatou as leis de sua comunidade (eis aqui mais alguns argumentos de defesa dos agressores).

Jesus, no entanto, vê ali pessoas, seres humanos. O mal que se instala ali, seja por parte de quem delinquiu, seja por parte de quem pretende justiçá-la, não é mais forte que o amor que ele prega: “Atire a primeira pedra, quem nunca pecou!” Essa é a voz da razão e do coração: quem nunca infringiu a lei? Cada um de nós tem pequenos ou grandes delitos registrados na alma, que mantemos em segredo. Lembremos: cada vez que acelero meu carro acima da velocidade permitida, infrinjo a lei. Cada vez que falsifico uma carteira de estudante; cada vez que crio, supervalorizo ou omito informações no meu currículo, infrinjo a lei. Não é suficiente? Pedro pergunta a Jesus: “Senhor, quantas vezes devo perdoar meu irmão, quando ele pecar contra mim? Até sete vezes? Jesus responde: Não até sete, mas até setenta vezes sete.” Perdoar é não deixar que o nosso coração seja tomado pelo mal, pela ira, pelo ódio, pela violência.

Então, vamos deixar os delinquentes soltos por aí? (Aqui se encaixa o argumento que diz que não se garante os “direitos civis para gente de bem”). Nem mesmo Jesus diria isso. Ele foi bem claro ao dizer “Dai a César o que é de César.” Mas a retirada de alguém que delinquiu da sociedade temporariamente deveria ser movida pela ideia de dar a essa pessoa a oportunidade de resgatar seu crime, regenerar-se. Não a de puni-lo exemplarmente, jogá-lo em cadeias que aceitamos serem horríveis, degradantes, porque assim ele pode sofrer mais.

Por fim, Jesus nos dá uma outra lição, por meio de Pedro: “Então Jesus lhes disse: ainda essa noite todos vocês me abandonarão. (...) Pedro respondeu: Ainda que todos te abandonem, eu nunca te abandonarei! Respondeu Jesus: Asseguro-lhe que ainda esta noite, antes que o galo cante, três vezes você me negará.”

Por que Pedro nega a Jesus, se sabemos que ele o amava profundamente? Por medo. Esse medo profundo que muitas vezes temos em nosso coração. Medo do outro, medo do que é diferente, medo de não ser aceitos, medo de não sermos compreendidos, medo de assumirmos a nossa parte no projeto divino. 

Fracos que somos, deixamos que nosso medo nos domine e esquecemos que, ao acreditar em um Deus onipotente, deveríamos confiar plenamente na justiça divina e fazermos nossa parte para que o mal deixe de existir em nosso corações. Cada momento que optamos pela violência ou a justificamos, somos como Pedro, negando que conhecemos Jesus, que conhecemos sua mensagem, traindo assim aquele que se propôs ao sacrifício para nos trazer para o caminho da luz.

(Na minha postagem do dia 22/12/2013, neste mesmo blog: "Anjo Vingativo ou Companheiro Compassivo?" comento uma interpretação da passagem bíblica sobre Jonas, que traz alguns pontos coincidentes com esse texto. Vale a pena conferir!)