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quarta-feira, 23 de agosto de 2023

Notas preliminares: “muro” como metáfora em Largo da Peça de Ana Andrade

             A peça de teatro Largo da Peça foi publicada inicialmente em 2021, tendo sido a vencedora do Concurso de Textos de Dramaturgia, do Projeto “Leituras Assistidas” do Centro Cultural do Brasil em Angola em 2021. A autora desse texto é a angolana Ana Andrade, graduada em História e atriz atuante na cena teatral angolana, fundadora do grupo “Elinga Teatro”, e que também trabalhou nos campos da tradução, adaptação de textos teatrais para radiodifusão e produção cultural em geral.

A peça traz a história de um grupo de mulheres com laços familiares que, no período da independência de Angola, em meados da década de 70, fase de grandes mudanças políticas e sociais, aguardam a volta do filho de uma delas que se encontrava no exterior. As vidas dessas mulheres se entrelaçam e seus dramas pessoais reverberam umas nas outras, enquanto do lado de fora do quintal, do outro lado do muro, as mudanças vão se impondo.

A peça é, até certo ponto, uma peça escrita numa chave realista, com os pequenos acontecimentos da vida de cada uma daquelas mulheres representando situações a que estavam submetidas muitas mulheres daquela época. Mas há no texto um elemento que se destaca, um elemento “mágico”, um fato que poderia ser comum, mas que toma um caráter metafórico em sua repetição: o muro que rodeia a casa desmorona, não uma, mas quatro vezes (cinco se considerarmos o desmoronar do muro na cena final como dois eventos, antes e depois da canção de Teresa).

Para refletir sobre o muro do quintal desenhado por Ana Andrade, é preciso pensarmos o que a imagem de um muro pode evocar. O muro como metáfora é um elemento curioso por ter uma leitura paradoxal. Construir um muro para se proteger é também se encarcerar dentro dele. O muro que cerca uma comunidade permite que a comunidade fique segura, mas também impede que essa mesma comunidade tenha contato com o que está além dela, limitando, imobilizando e, no extremo, interditando a experiência além do muro. Assim, o muro separa, e assim o fazendo, esconde o que está além do muro para os dois lados que são separados por ele.

Na Literatura, o muro toma diversas configurações. Em Eralldo (2019), encontramos alguns exemplos: em Sombras de Reis Barbudos, do brasileiro Jose J. Veiga, os muros de Taitara “surgem da noite para o dia na cidade, à beira de portas e janelas criando um verdadeiro labirinto urbano, e, mais ainda, uma prisão opressora aos habitantes da cidade”; na obra “A Casa de Asterion, do argentino Jorge Luís Borges, “as paredes e os muros que envolvem seu personagem tanto podem esconder os perigos de seu exterior, ou quem sabe proteger o que está no exterior”; em “As Crônicas do Gelo e do Fogo do norte-americano George R. R. Martin,a gigantesca e colossal muralha feita de gelo e magia é a última proteção dos vivos contra Os Outros” e, em O Conto da Aia da canadense Margaret Eleanor Atwood, “a Universidade de Harvard é transformada em prisão, e seus muros então são preparados de forma medonha e intimidadora com seus arames farpados e holofotes”. Esses são apenas alguns exemplos de como o muro é uma metáfora potente que pode, inclusive, tornar-se o elemento central da narrativa, muitas vezes ocupando o papel do próprio antagonista.

Araújo (2021), ao estudar 3 autores portugueses (Cesário Verde, Raul Brandão e Fernando Pessoa), destaca também elementos que considero interessantes para pensar o nosso muro do Largo da Peça:

 

a imagem do muro também se associa aos mitos civilizacionais e pátrios do passado, já que o muro, principalmente em sua forma histórica da “muralha”, pertencente à paisagem fundante da nação portuguesa, participa de uma espécie de repertório iconográfico nacional: de um lado, peça arquitetônica estruturante na organização das habitações e espaços urbanos, pautada por ideais geométricos e construtivos, e de outro, ligada à cristalização de estratégias de guerra e fortificações que marcaram a formação da cidade, podendo remeter, por isso, a uma espécie de hostilidade recalcada e ideia de conflito. A imagem do muro comporta essa duplicidade disjuntiva entre a noção de construção dos espaços identitários, ligados à casa e aos quintais da infância, por exemplo, bem como à organização do saber, como o anexo aos edifícios e instituições, e, por outro lado, traz a marca histórica da violência, da divisão, da imposição do obstáculo e do limite (ARAÚJO, 2021, p. 143).

 

Vejamos então que muro é esse que a Ana Andrade desenha em sua rubrica inicial para definição de um espaço físico em que se desenrolará a peça:

 

Há um muro com cacos para impedir gatunos e um portão que dá para o exterior. Uma corda com roupa estendida, uma mesa num canto com bancos e cadeiras desengonçadas, um fogareiro. Uma outra porta junto à mesa é a entrada de casa. O muro que dá para o exterior é velho, com rachaduras e pintura lascada (ANDRADE, 2021, p. 15, negrito nosso).

 

Esse muro é evidentemente um muro de proteção dos bens materiais (impedir gatunos), e assume um aspecto assustador e de dissuasão na presença dos cacos postos ali para ferir quem se arriscar a tentar entrar no quintal. No entanto, há ali também um portão que dá para o exterior, o que significa que, tendo uma chave, é possível entrar e sair daquele espaço: dessa forma, é um muro de contenção, uma separação entre exterior e interior, que dá alguma privacidade a quem mora na casa, afinal, o muro esconde o que ou quem está dentro do quintal. Mas ele também “esconde” o que ou quem está do lado de fora, assim também pode esconder o que não se quer ou não se deve ver... A aparência desse muro compõe um retrato de um ambiente mal cuidado, ultrapassado, decadente, à beira de um colapso em que as cadeiras desengonçadas “combinam” muito bem com rachaduras e a pintura lascada do muro.

A primeira vez que se ouve o barulho do muro que desmorona (ANDRADE, 2021, p. 23), no primeiro ato, o grupo está em um longo silêncio após uma conversa da Mãe com Tai a respeito da tristeza de Tai por não ter estudado e, assim, conquistado sua autonomia, sua “independência”: “se eu tivesse estudado, podia fazer mais coisas, ser enfermeira, trabalhar no hospital. Ter a minha casa...” (ANDRADE, 2021, p. 22), sonhos esses que a Mãe descarta de forma irônica ao atribuir à “vontade divina” e às limitações da própria Tai o fato de ela não ter tido essas oportunidades. Um retrato bem acabado de como a sociedade patriarcal trata a ânsia de liberdade das mulheres e de muitas das minorias, a partir de um olhar meritocrata. E é também o olhar da metrópole em relação à colônia. Contrariando essa perspectiva, Michiko, mais nova que Tai, proclama: “Vou correr esse mundo todo, vou chegar a Luanda e continuo. Vou ver morros e rios e pontes que nunca vocês viram. E pessoas que nunca vocês viram, que falam as línguas das canções da rádio. Vou, vou, vou e nunca vou voltar” (ANDRADE, 2021, p. 22).

A rubrica desse momento já deixa claro que não será a única vez que o muro irá cair: “No longo silêncio que se segue, apenas se ouve o barulho do muro a desmoronar-se pela primeira vez” (ANDRADE, 2021, p. 23). Esse primeiro desmoronar provoca uma reação sobressaltada do Filho: “mas esta casa está a cair aos bocados! Mãe, temos de refazer esse muro. Mas agora estou cá eu, vocês não precisam de se preocupar. Foi para isso que voltei também, para estar ao vosso lado” (ANDRADE, 2021, p. 23). O fato de sabermos que essa não será a primeira vez que o muro desmoronará pode nos indicar que o “conserto” a que se propõe o Filho não é possível. Será que esse desmoronar do muro indica que não é possível abafar, esconder mais esse desejo de autodeterminação e liberdade das mulheres, das minorias, das colônias, colocando muros para que Michiko não vá além dele?

A segunda vez que o muro desmorona, já na primeira cena do segundo ato, estamos diante das lembranças dolorosas de Tai que caminha, ela e sua sombra projetada no muro, pelo quintal. Tai relembra o momento em que se descobre grávida e que Cabral, seu amante português, deixa claro que não quer aquela gravidez. Os muros estão bem definidos, segundo Cabral:

 

Não mistures as coisas, rapariga, eu e tu é dentro deste quintal, estás a ver? Não estamos tão bem assim? Fora do quintal é outra coisa, rapariga. É a vida real, eu tenho a minha vida com a minha gente e tu tens a tua. Não se misturam estas vidas... não se misturam... anda, vem-te sentar aqui ao pé de mim. Pára lá de chorar, vamos remediar isso, eu ajudo-te... prometo, anda, dá-me a tua mão... (ANDRADE, 2021, p. 33).

 

Essas lembranças são dolorosas: “Tai grita, lamento desgarrado, dor e raiva - Onde estás? onde quer que estejas, não ficarás sem mim, não viverás sem mim!” Diante desse grito, estabelece-se o “silêncio, a luz esmorece, caem pedaços de muro, ouve-se o desmoronar do muro pela 2ª vez” (ANDRADE, 2021, p. 33). As relações entre Tai e Cabral podem aqui ser uma grande metáfora do processo de colonização? O muro que cai seria então o rompimento doloroso desse processo? Uma nostalgia do passado?

A terceira vez em que o muro cai, acabamos de ouvir uma história de Teresa Bombo que se passa no Brasil. A mera possibilidade de um contato com o “preto” gera grandes consequências: “a Madrinha bateu-me com um chinelo e disse que a partir daí eu não podia mais sair sozinha, porque havia um preto por lá e ela não queria sarilhos. A madrinha disse: és uma ingrata, é melhor voltares para a tua terra” (ANDRADE, 2021, p. 38). E finalizando o segundo ato: “Silêncio. Apenas o barulho do muro a desmoronar-se pela 3ª vez. Escurece” (ANDRADE, 2021, p. 38). A “madrinha” no Brasil poderia representar o próprio Brasil, considerando que o Brasil foi o primeiro país no mundo a reconhecer a independência de Angola, uma semana antes da própria data de proclamação da república angolana? E se a “madrinha” é o Brasil, será que há aqui um questionamento pela forma como os angolanos são recebidos no Brasil, ou um questionamento sobre a forma como as relações entre Brasil e Angola se dão atualmente?

Na quarta vez em que o muro desmorona, a situação que antecede esse evento é caótica. As tropas do “exército revolucionário” invadem o quintal através do portão. Em busca de um contrarrevolucionário, desconfiam da presença do Filho. Ao final de uma conversa tensa, os dois soldados levam o Filho, que tenta argumentar: “calma, olha que vocês estão enganados. Vamo-nos acalmar. Estamos do mesmo lado, então não se vê? Mãe diga-lhes, Tai, fazes o favor de dizer a estes jovens, quem sou, de onde venho e pra onde... (o Tropa 2, agarra-o por um braço interrompendo-o e com pânico crescente) vão-me levar aonde?? Mãeeee!!!” (ANDRADE, 2021, p. 44). Os soldados levam também Michiko. A rubrica dá conta dos fatos que se precipitam, amontoando-se:

 

Vozearia fora do quintal, os tropas saem correndo, levando Michiko e o Filho. A confusão fora intensifica-se, há disparos, tiroteio, gritos. Tai cai no quintal desamparada. Está morta. A Mãe dobra-se sobre ela e chora. Entra Teresa Bombo e enquanto escurece à volta, senta-se num banquinho, no centro do palco e canta uma canção em umbundo, com os atores em palco imóveis nas suas últimas posições e o muro desmoronando pela 4ª vez (ANDRADE, 2021, p. 44, negrito nosso).

 

Assim que termina a canção de Teresa, ouve-se o muro desmoronando pela última vez, escurece e a peça tem seu fim. Esse último desmoronar do muro poderia ser lido como uma metáfora da mudança social que se opera nesse período histórico? Ou representar o fato de que cada uma daquelas pessoas vê seu mundo “cair por terra”? Ou, ainda mais profundamente, poderíamos pensar que as identidades daquelas pessoas deixam de fazer sentido nesse novo mundo?

Nessa direção, Araújo em sua análise da obra Húmus (1917) de Raul Brandão, afirma que

Ao dramatizar a disjunção, a imagem alegórica e recorrente do muro torna-se motivo central do livro, figura pensante da escrita, capaz de encenar a cisão do sujeito, a vivência dissonante do espaço e das relações sociais, a dúvida em relação à ética dúplice da civilização, em seu jogo entre aparência e verdade, e a crise constitutiva das representações diante de um novo estar no mundo” (ARAÚJO, 2021, p. 149).

 

Assim, não seria possível fazer essas mesmas afirmações ao analisar Largo da Peça? Tai e sua identidade cindida, as “vivências dissonantes das relações entre as diversas mulheres, e entre elas e o Filho, o jogo de aparências na relação entre Cabral e Tai, a necessidade de construir “um novo estar no mundo” e a incapacidade de fazê-lo?

Por fim, o próprio uso da palavra “desmoronar” em referência ao muro também não pode indicar um processo de desfazimento lento, insidioso, que na ação do tempo acaba por perder sua integridade e se tornar uma “ruína”, já que esse muro não é um muro que “desaba”, não é um muro que “cai”, é um muro que “desmorona”? Essa imagem escolhida pela autora para conduzir a narrativa é definitivamente uma imagem poderosa que merece um estudo mais aprofundado, como indicado pelas diversas questões levantadas nesse texto.

 

Referências

ANDRADE, Ana. Largo da peça. Luanda: Edições Handyman, 2021.

ARAÚJO, Joana Souto Guimarães. A imagem apórica e antidialética do muro em três autores modernos da literatura portuguesa: Cesário Verde, Raul Brandão e Fernando Pessoa. Contexto, Vitória, n. 39, p. 137-168, 2021.

ERALLDO, Douglas. 10 muros e muralhas da literatura. Listas literárias. 4 fev. 2019. Disponível em: https://www.listasliterarias.com/2019/02/10-muros-e-muralhas-da-literatura.html Acesso em: 14 maio 2023.

 

 

 

 

 

Guerras, guerras, guerras, guerras...

Li pela primeira vez A Palavra Progresso na Boca da Minha Mãe Soava Terrivelmente Falsa do romeno Matéi Visniec e, mais do que a questão estética e de estrutura dramática e narrativa, o que me tocou foi a possiblidade de fazer conexões com outras obras artísticas que, como ecos, devolvem sons, discursos, pedaços das mesmas dores da guerra.

O primeiro eco vem da relação de Vibko e seus pais e me traz à lembrança o filme “Sonhos” de Akira Kurosawa (1990). Em um dos “sonhos”, chamado “O Túnel”, o comandante de um pelotão dizimado na guerra encontra-se com um dos seus soldados que lhe conta: “Meus pais ainda me esperam, não acreditam que eu morri” enquanto indica a luz de uma casa no vilarejo. Os pais de Vibko também têm uma memória viva do filho e, se não esperam mais pelo filho vivo, esperam pelo encontro com seu corpo, com seu luto.

O segundo eco vem de como Vibko desenha um retrato da guerra:

 

Cuidado aí quando você cava, pai. Nessa floresta há várias camadas de mortos... São camadas frágeis, pai, pode ruir a qualquer momento... É como se a gente tivesse várias teias de aranha tecidas umas sobre as outras, com um monte de gente aprisionada dentro delas... Tem gente de umas trinta nacionalidades nas entranhas dessa floresta. Mas a gente se entende bem junto... Às vezes a gente começa a cantar e aí eu te juro, é uma farra, ouve-se servo-croata, russo, alemão, italiano, albanês, turco, búlgaro, grego e até mesmo romeno... Nos dias de chuva ou quando a terra desmorona e as camadas se empilham, a gente se envia, para se divertir, uns presentinhos, caixas, fivelas, velhas condecorações... [...] Em seguida tem alguns paraquedistas ingleses e alguns italianos perdidos na época da invasão da Eslovênia em 1941. E depois, mais embaixo, tem os tipos da primeira grande guerra mundial... É uma camada mista, a gente encontra de tudo, sérvios, croatas, bósnios, austríacos, turcos... E depois, quanto mais você desce, mais eles ficam numerosos. A gente não compreende mais nada... Há os caras da guerra dos Bálcãs de 1912, e há os caras da guerra russo-turca de 1877... De verdade, tem todos os Bálcãs e todo o Mediterrâneo enterrados aqui. Parece até que as pessoas não queriam morrer em casa e vieram morrer aqui... (VISNIEC, 2012, p. 51-52).

 

E esse retrato me remete ao cessar-fogo de dezembro de 1914 na Frente Ocidental na Primeira Guerra Mundial, inspiração para o filme de Joyeux Noël de Christian Carion de 2005 (coincidentemente o mesmo ano de publicação do drama de Visniec e com a participação da Romênia em sua realização). Uma comemoração entre os vivos, nos mesmos moldes do descrito por Vibko, vivos que não foram capazes de levar esse cessar-fogo às últimas consequências e encerrar a guerra, tornando-se então os cadáveres de Visniec, depositados em camadas.

E, dispostos assim, em camadas, tornam-se também vítimas inertes da rapinagem que ocorre nos campos de batalha, como descrito na obra Os Miseráveis de Victor Hugo, em que Thénardier saqueava cadáveres:

Porém agora tudo era silêncio naquele lugar nefasto, onde as vítimas de tão lamentoso desastre fizeram ouvir o estertor da sua inconcebível angústia. A azinhaga extravasava de cavalos e cavaleiros, inextricavelmente amontoados, confundidos, emaranhados. Terrível emaranhamento! As ribanceiras do caminho desapareciam debaixo daquele montão de cadáveres que nivelava a azinhaga com a planície, rasando a aresta da ribanceira, como um alqueire de cevada bem medido. Um montão de mortos por cima, um rio de sangue em baixo, eis o que era aquele caminho na noite que se seguiu ao dia 18 de junho de 1815. Corria o sangue até à calçada de Nivelles, onde se espraiava num largo pântano, em frente da trincheira de troncos de árvores que obstruía a estrada, no local que ainda hoje ali se mostra. Foi na parte oposta, como lembrados estarão, que teve lugar a derrota dos couraceiros. A espessura dos cadáveres era proporcional à profundidade da azinhaga. Quase no meio, porém, no sítio onde ela se tornava plana, e por onde passara a divisão de Delord, a camada dos mortos era mais delgada. Para esse lado, pois, se dirigia o vagabundo que acabamos de fazer entrever ao leitor, esquadrinhando aquele túmulo imenso, circunvagando a vista para todos os lados, passando uma como medonha revista a todos aqueles mortos, caminhando com os pés metidos no sangue dos vencidos e dos vencedores (HUGO, 2013, p. 275).

 

Já o terceiro eco vem das palavras da mãe de Vibko:

Nesse país uma mãe feliz é uma mãe que sabe onde estão enterrados seus filhos.

Uma mãe feliz é uma mãe que pode tomar conta à vontade de uma tumba e que tem certeza de que nessa tumba se encontra o corpo de seu filho, e não um cadáver encontrado ao acaso.

Uma mãe feliz é uma mãe que pode chorar o quanto quiser ao lado da tumba que abriga as ossadas de seu filho, e não de um outro qualquer (VISNIEC, 2006, p. 48).

 

Como não associar essas frases à busca dos desaparecidos no período de ditadura militar no nosso país? À dor daqueles que ainda hoje não puderam enterrar seus mortos?

Táscia Souza, doutora em Estudos Literários, cuja tese foi transformada no livro Aqui (não) jaz: o trágico e os mortos sem sepultura da ditadura civil-militar brasileira, usa essas mesmas frases de Visniec como epígrafe em seu texto “O silêncio que, há 50 anos, vem do Araguaia” (SOUZA, 2022). Nesse texto, ela comenta as mortes e desaparecimentos dos corpos dos guerrilheiros do Araguaia e a forma como o Major Curió e o Coronel Ustra estavam sendo celebrados pelo então presidente Bolsonaro. Seu texto termina com a frase: “A palavra progresso na bandeira do meu País também soa terrivelmente falsa” (SOUZA, 2022), o que abre uma possibilidade enorme de reflexão sobre o que é acontece ainda no nosso país. Afinal, quem mandou matar Marielle? Onde está Amarildo?

O último eco que destaco aqui é o que envolve todo o processo de violência e prostituição forçada de Ida. A rubrica de Visniec para Ida é dolorosa: “A garota olha de novo para o vazio. Logo depois, passados alguns segundos, começa a cantar baixinho. É uma canção que vem de longe com palavras incompreensíveis” (VISNIEC, 2006, p. 59-60). E essa rubrica me levou direto a um dos filmes mais dolorosos e violentos a que já assisti e que trata exatamente da guerra na antiga Iugoslávia, Na Terra de Amor e Ódio, dirigido por Angelina Jolie de 2011. Nesse filme, podemos ver diversos estupros oriundos de prostituição forçada pelos soldados das mulheres da região, a crueldade que enlouquece, a loucura daquelas que se dissociam da realidade porque não são capazes de viver a realidade de destruição do corpo e da alma.

E esses são apenas alguns dos ecos que o texto de Visniec me trouxe...

Com certeza, se há palavras que soam falsas se forem associadas à palavra “progresso” são as que descrevem as situações encenadas no texto de Visniec: a guerra e suas consequências - luto, violência, morte, prostituição.

A guerra. Sempre a guerra.

 

Referências

 

HUGO, Victor. Os miseráveis. Tradução de Francisco F. da Silva Vieira. Centaur Editions, 2013. Disponível em: file:///C:/Users/Stella/Downloads/Os%20Miseraveis%20-%20Victor%20Hugo-1.pdf Acesso em 22 abr. 2023.

 

FELIZ Natal [Joyeux Noël]. Roteiro e direção de Christian Carion. Nord-Ouest Films, 2005. 

 

NA TERRA de Amor e Ódio [In the Land of Blood and Honey]. Roteiro e direção de Angelina Jolie. GK Films, 2011.

 

SONHOS [Yume]. Roteiro e direção de Akira Kurosawa e Ishirô Honda. Warner Bros., 1990.

SOUZA, Táscia. O silêncio que, há 50 anos, vem do Araguaia. Contee. 12 abr. 2022. Disponível em: https://contee.org.br/o-silencio-que-ha-50-anos-vem-do-araguaia/. Acesso em: 25 abr. 2023.

 

TRÉGUA de Natal. In: WIKIPÉDIA: a enciclopédia livre. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Tr%C3%A9gua_de_Natal. Acesso em: 25 abr. 2023.

 

VISNIEC, Matéi. A palavra progresso na boca da minha mãe soava terrivelmente falsa. Tradução de. Luiza Jatobá. São Paulo: É Realizações, 2012.