quarta-feira, 23 de agosto de 2023

O Nordeste Imaginado: a tese, o livro, a peça, o jornal

             Em 1999, Durval Muniz de Albuquerque Júnior defende sua tese na área da História: O Engenho Anti-Moderno: a invenção do Nordeste e outras artes. Sua tese se divide em quatro partes que apresento aqui de forma bastante resumida. Em “Geografia em Ruínas”, o autor desenvolve a ideia de que a imagem do Nordeste é recente, filha de uma elite em decadência diante do processo de modernização no Sudeste, sendo assim, filha da modernidade, mas filha reacionária. Em “Espaços da Saudade”, o autor discute como os intelectuais vão criar uma imagem do Nordeste no campo artístico – Literatura, Artes Visuais, Música, Teatro – como um espaço de retorno saudoso às “raízes”. Já em “Territórios da Revolta”, o autor destaca uma outra imagem de Nordeste, também estabelecida pelos intelectuais no campo artístico: um Nordeste voltado para o futuro, o Nordeste das utopias e da revolta diante da miséria. Por fim, em “Cartografias da Alegria”, o autor comenta a importância de movimentos como o Tropicalismo que surge como resposta a um momento histórico complexo de contradições provocado pelo aprofundamento do capitalismo no país – o Cinema Novo, o teatro do grupo Oficina, a Tropicália. Ele ressalta também o consequente movimento de modernização do Nordeste, agora visto como uma “região-problema”: a mais subdesenvolvida, mas a mais “autêntica”. Nessa parte, o autor comenta também o papel do coronel e do cangaceiro nesse imaginário e faz uma linha do tempo.

Essa tese, numa forma mais resumida, mas com a mesma estrutura, é publicada em 1999, com o nome de A invenção do Nordeste e outras artes. Esse livro é o tema de uma série de entrevistas, destacando-se aqui a entrevista do autor ao jornalista Paulo Henrique Amorim, em dezembro de 2017, dividida em 3 episódios, e a entrevista dada ao canal Café Filosófico em outubro de 2019. Nessas entrevistas o autor pontua os pontos mais importantes de sus pesquisa, destacando-se sua proposta de “dissolver o Nordeste” imagético atual e a instituir um novo Nordeste pela reformulação do imaginário que reserva ao Nordeste o papel de subalternidade.

A peça de teatro A Invenção do Nordeste do grupo potiguar Carmim, segundo a própria diretora da montagem, a atriz Quitéria Kelly, teve como ponto de partida suas inquietações quanto às reações xenófobas em relação aos nordestinos na época das eleições presidenciais de 2014. Em busca de material que pudesse colaborar com esse debate, a atriz entra em contato com a obra do historiador Durval Muniz de Albuquerque Júnior. Em suas pesquisas dali em diante, o grupo Carmim: “mergulhou nos mecanismos estéticos, históricos e culturais que contribuíram para a formação de uma visão reducionista do Nordeste brasileiro” (CARMIN, 2020). Um segundo evento, em 2016, dará mais um impulso às pesquisas em andamento:

 

A trupe circulava pelo país no festival Palco Giratório com o espetáculo Jacy. “Em uma das apresentações, alguém da plateia comentou: essa peça é tão boa, nem parece nordestina”, recorda o ator e dramaturgo Henrique Fontes, que assina a dramaturgia de A Invenção do Nordeste com Pablo Capistrano e divide o palco com Rafael Guedes e Igor Fortunato. “Talvez numa tentativa de elogiar, mas muito mais como ofensa, a pessoa queria dizer que não tinha traços de uma peça do Nordeste, com recortes regionalistas em que a direção de arte carrega em tons ocres, chão rachado e figurino de algodão cru”, completa Fontes, citando alguns dos clichês de representação cênica da região (ROMANOFF, 2023).

 

Em agosto de 2017, a peça A Invenção do Nordeste estreia e a partir daí tem uma trajetória de sucesso, sendo vencedora do 31º. Prêmio Shell de Melhor Dramaturgia e do Prêmio Cesgranrio de Teatro na categoria Melhor Espetáculo, ambos em 2019. A peça está dividida em 7 “movimentos” e o enredo é descrito pelo grupo Carmim como:

 

Um diretor é contratado por uma grande produtora para realizar a missão de selecionar um ator nordestino que possa interpretar com maestria um personagem… nordestino! Depois de vários testes e entrevistas, dois atores vão para a final e o diretor tem sete semanas para deixá-los prontos para a última fase. Durante a preparação, os atores refletem sobre sua identidade, cultura, história pessoal e descobrem que ser e viver um personagem nordestino não é tarefa simples (CARMIM, 2020).

 

            A peça em si está claramente fundamentada na obra de Durval Muniz de Albuquerque Júnior na menção aos temas: o corpo fraco do nordestino, o cabra-macho, a seca, a fome, o coronel e o cangaceiro. Esses temas se entrelaçam, montando uma crítica à imagem “inventada” pelas elites regionais em “parceria” com os intelectuais.

Sendo a peça de 2017, todo o processo histórico pelo qual o país passou em 2018 e em 2022 com a eleições presidenciais, e que representou um aprofundamento da xenofobia que foi o ponto de partida para a peça, está de certa forma “fora” da peça e, na minha opinião, são elementos que poderia indicar a necessidade de uma “atualização” dela. Por exemplo, um evento de 2021 é marcante e poderia ser um elemento a ser discutido na peça.

No dia 22 de janeiro de 2021, a revista Veja São Paulo publicou uma capa especial sobre o 467º. aniversário da cidade paulista. O jornal coloca em sua capa a seguinte chamada: “A Capital do Nordeste: os novos migrantes que reinventam o design, a gastronomia, as startups e outras atividades da metrópole, que completa 467 anos” (ALVES, 2021) juntamente com uma foto de seis migrantes nordestinos (figura 1).

 

Figura 1 – Capa Veja São Paulo – 22 de janeiro de 2021.


Fonte: Veja São Paulo/Reprodução

 

A ideia de que São Paulo seria a “capital do Nordeste” provocou uma série de críticas, bem como a foto que acompanha a reportagem, com seis pessoas brancas ou embranquecidas:

 

os internautas, principalmente nordestinos, não deixaram o caso passar despercebido e criticaram duramente a revista “O Nordeste sendo colocado como um local homogêneo, de população homogênea, cuja capital está situada em outro local que sempre marginalizou os nordestinos e os reduziu a um estereótipo. É tipo um editorial de um jornal parisiense falando: Paris, a capital da África. Nojento”, disparou uma jovem. “Capa da Veja SP que trata do nordeste, uma das regiões mais negras no Brasil, não tem uma pessoa negra. Se apoia em estereótipos visuais para falar da região e resume uma região plural e complexa a uma caixinha”, avaliou a repórter Vitória Régia da Silva (ROCHA, 2021).

 

Eu acredito que as questões aqui indicadas não encerram o debate, mas sugerem a necessidade de um aprofundamento dos temas, incluindo a forma como as elites do sul começam a tentar se apropriar do que é visto como positivo no nordestino desde que “filtrado” na cultura do sul.

 

Referências:

ALBUQUERQUE JUNIOR, Durval Muniz. O engenho anti-moderno: a invenção do Nordeste e outras artes. 507f. 1994. 507f. Tese (Doutorado em História) - Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Programa de Pós-Graduação em História. Campinas, 1994. Disponível em: https://repositorio.unicamp.br/acervo/detalhe/96855 Acesso em: 13 jun. 2023.

ALBUQUERQUE JUNIOR, Durval Muniz. Durval: é preciso dissolver esse Nordeste! [Entrevista concedida a] Paulo Henrique Amorim. TV Afiada. Disponível em: https://youtu.be/t_Z_e-EK19Y Acesso em: 13 jun. 2023.

ALBUQUERQUE JUNIOR, Durval Muniz. Durval: o elogio da mestiçagem preserva a Casa Grande. [Entrevista concedida a] Paulo Henrique Amorim. TV Afiada. Disponível em: https://youtu.be/J6eKUTetU58 Acesso em: 13 jun. 2023.

ALBUQUERQUE JUNIOR, Durval Muniz. Durval: o sertanejo é antes de tudo... um animal! A baleia! [Entrevista concedida a] Paulo Henrique Amorim. TV Afiada. Disponível em: https://youtu.be/HaibBbb0FeA Acesso em: 13 jun. 2023.

ALBUQUERQUE JUNIOR, Durval Muniz. A invenção do nordeste. [Entrevista concedida a] Gilmar Santos. Humus Cultural. 1 vídeo (48min.). Disponível em: https://youtu.be/_nGHeVZZmHM Acesso em: 13 jun. 2023.

ALVES, Maíra. Veja elege SP como 'capital do Nordeste' e capitais nordestinas se manifestam. Correio Braziliense. 22 jan. 2021. Disponível em: https://www.correiobraziliense.com.br/brasil/2021/01/4902074-veja-elege-sp-como-capital-do-nordeste-e-capitais-nordestinas-se-manifestam.html

GRUPO CARMIM. Disponível em: https://www.grupocarmin.com.br/?page_id=1460 Acesso em: 13 jun. 2023.

REYNAUD, Nayara. 31º PRÊMIO SHELL DE TEATRO | Veja os vencedores do tradicional prêmio do teatro brasileiro. nervos. 19 mar. 2019. Disponível em: https://www.nervos.com.br/post/2019/03/13/31premioshelldeteatro Acesso em: 13 jun. 2023.

ROCHA, Lucas. Após capa absurda da Veja SP, prefeituras nordestinas reagem da MELHOR forma e viralizam na web – confira! Hugo Gloss. 23 jan. 2021. Disponível em: https://hugogloss.uol.com.br/buzz/apos-capa-absurda-da-veja-sp-prefeituras-nordestinas-reagem-da-melhor-forma-e-viralizam-na-web-confira/ Acesso em: 13 jun. 2021.

ROMANOFF, Ricardo. “A Invenção do Nordeste” reflete sobre identidades culturais e estereótipos.  Matinal Jornalismo Roger Lerina. 18 maio 2023. Disponível em: https://www.matinaljornalismo.com.br/rogerlerina/teatro/a-invencao-do-nordeste-grupo-carmin/ Acesso em: 15 jun. 2023.

 

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