quarta-feira, 23 de agosto de 2023

Guerras, guerras, guerras, guerras...

Li pela primeira vez A Palavra Progresso na Boca da Minha Mãe Soava Terrivelmente Falsa do romeno Matéi Visniec e, mais do que a questão estética e de estrutura dramática e narrativa, o que me tocou foi a possiblidade de fazer conexões com outras obras artísticas que, como ecos, devolvem sons, discursos, pedaços das mesmas dores da guerra.

O primeiro eco vem da relação de Vibko e seus pais e me traz à lembrança o filme “Sonhos” de Akira Kurosawa (1990). Em um dos “sonhos”, chamado “O Túnel”, o comandante de um pelotão dizimado na guerra encontra-se com um dos seus soldados que lhe conta: “Meus pais ainda me esperam, não acreditam que eu morri” enquanto indica a luz de uma casa no vilarejo. Os pais de Vibko também têm uma memória viva do filho e, se não esperam mais pelo filho vivo, esperam pelo encontro com seu corpo, com seu luto.

O segundo eco vem de como Vibko desenha um retrato da guerra:

 

Cuidado aí quando você cava, pai. Nessa floresta há várias camadas de mortos... São camadas frágeis, pai, pode ruir a qualquer momento... É como se a gente tivesse várias teias de aranha tecidas umas sobre as outras, com um monte de gente aprisionada dentro delas... Tem gente de umas trinta nacionalidades nas entranhas dessa floresta. Mas a gente se entende bem junto... Às vezes a gente começa a cantar e aí eu te juro, é uma farra, ouve-se servo-croata, russo, alemão, italiano, albanês, turco, búlgaro, grego e até mesmo romeno... Nos dias de chuva ou quando a terra desmorona e as camadas se empilham, a gente se envia, para se divertir, uns presentinhos, caixas, fivelas, velhas condecorações... [...] Em seguida tem alguns paraquedistas ingleses e alguns italianos perdidos na época da invasão da Eslovênia em 1941. E depois, mais embaixo, tem os tipos da primeira grande guerra mundial... É uma camada mista, a gente encontra de tudo, sérvios, croatas, bósnios, austríacos, turcos... E depois, quanto mais você desce, mais eles ficam numerosos. A gente não compreende mais nada... Há os caras da guerra dos Bálcãs de 1912, e há os caras da guerra russo-turca de 1877... De verdade, tem todos os Bálcãs e todo o Mediterrâneo enterrados aqui. Parece até que as pessoas não queriam morrer em casa e vieram morrer aqui... (VISNIEC, 2012, p. 51-52).

 

E esse retrato me remete ao cessar-fogo de dezembro de 1914 na Frente Ocidental na Primeira Guerra Mundial, inspiração para o filme de Joyeux Noël de Christian Carion de 2005 (coincidentemente o mesmo ano de publicação do drama de Visniec e com a participação da Romênia em sua realização). Uma comemoração entre os vivos, nos mesmos moldes do descrito por Vibko, vivos que não foram capazes de levar esse cessar-fogo às últimas consequências e encerrar a guerra, tornando-se então os cadáveres de Visniec, depositados em camadas.

E, dispostos assim, em camadas, tornam-se também vítimas inertes da rapinagem que ocorre nos campos de batalha, como descrito na obra Os Miseráveis de Victor Hugo, em que Thénardier saqueava cadáveres:

Porém agora tudo era silêncio naquele lugar nefasto, onde as vítimas de tão lamentoso desastre fizeram ouvir o estertor da sua inconcebível angústia. A azinhaga extravasava de cavalos e cavaleiros, inextricavelmente amontoados, confundidos, emaranhados. Terrível emaranhamento! As ribanceiras do caminho desapareciam debaixo daquele montão de cadáveres que nivelava a azinhaga com a planície, rasando a aresta da ribanceira, como um alqueire de cevada bem medido. Um montão de mortos por cima, um rio de sangue em baixo, eis o que era aquele caminho na noite que se seguiu ao dia 18 de junho de 1815. Corria o sangue até à calçada de Nivelles, onde se espraiava num largo pântano, em frente da trincheira de troncos de árvores que obstruía a estrada, no local que ainda hoje ali se mostra. Foi na parte oposta, como lembrados estarão, que teve lugar a derrota dos couraceiros. A espessura dos cadáveres era proporcional à profundidade da azinhaga. Quase no meio, porém, no sítio onde ela se tornava plana, e por onde passara a divisão de Delord, a camada dos mortos era mais delgada. Para esse lado, pois, se dirigia o vagabundo que acabamos de fazer entrever ao leitor, esquadrinhando aquele túmulo imenso, circunvagando a vista para todos os lados, passando uma como medonha revista a todos aqueles mortos, caminhando com os pés metidos no sangue dos vencidos e dos vencedores (HUGO, 2013, p. 275).

 

Já o terceiro eco vem das palavras da mãe de Vibko:

Nesse país uma mãe feliz é uma mãe que sabe onde estão enterrados seus filhos.

Uma mãe feliz é uma mãe que pode tomar conta à vontade de uma tumba e que tem certeza de que nessa tumba se encontra o corpo de seu filho, e não um cadáver encontrado ao acaso.

Uma mãe feliz é uma mãe que pode chorar o quanto quiser ao lado da tumba que abriga as ossadas de seu filho, e não de um outro qualquer (VISNIEC, 2006, p. 48).

 

Como não associar essas frases à busca dos desaparecidos no período de ditadura militar no nosso país? À dor daqueles que ainda hoje não puderam enterrar seus mortos?

Táscia Souza, doutora em Estudos Literários, cuja tese foi transformada no livro Aqui (não) jaz: o trágico e os mortos sem sepultura da ditadura civil-militar brasileira, usa essas mesmas frases de Visniec como epígrafe em seu texto “O silêncio que, há 50 anos, vem do Araguaia” (SOUZA, 2022). Nesse texto, ela comenta as mortes e desaparecimentos dos corpos dos guerrilheiros do Araguaia e a forma como o Major Curió e o Coronel Ustra estavam sendo celebrados pelo então presidente Bolsonaro. Seu texto termina com a frase: “A palavra progresso na bandeira do meu País também soa terrivelmente falsa” (SOUZA, 2022), o que abre uma possibilidade enorme de reflexão sobre o que é acontece ainda no nosso país. Afinal, quem mandou matar Marielle? Onde está Amarildo?

O último eco que destaco aqui é o que envolve todo o processo de violência e prostituição forçada de Ida. A rubrica de Visniec para Ida é dolorosa: “A garota olha de novo para o vazio. Logo depois, passados alguns segundos, começa a cantar baixinho. É uma canção que vem de longe com palavras incompreensíveis” (VISNIEC, 2006, p. 59-60). E essa rubrica me levou direto a um dos filmes mais dolorosos e violentos a que já assisti e que trata exatamente da guerra na antiga Iugoslávia, Na Terra de Amor e Ódio, dirigido por Angelina Jolie de 2011. Nesse filme, podemos ver diversos estupros oriundos de prostituição forçada pelos soldados das mulheres da região, a crueldade que enlouquece, a loucura daquelas que se dissociam da realidade porque não são capazes de viver a realidade de destruição do corpo e da alma.

E esses são apenas alguns dos ecos que o texto de Visniec me trouxe...

Com certeza, se há palavras que soam falsas se forem associadas à palavra “progresso” são as que descrevem as situações encenadas no texto de Visniec: a guerra e suas consequências - luto, violência, morte, prostituição.

A guerra. Sempre a guerra.

 

Referências

 

HUGO, Victor. Os miseráveis. Tradução de Francisco F. da Silva Vieira. Centaur Editions, 2013. Disponível em: file:///C:/Users/Stella/Downloads/Os%20Miseraveis%20-%20Victor%20Hugo-1.pdf Acesso em 22 abr. 2023.

 

FELIZ Natal [Joyeux Noël]. Roteiro e direção de Christian Carion. Nord-Ouest Films, 2005. 

 

NA TERRA de Amor e Ódio [In the Land of Blood and Honey]. Roteiro e direção de Angelina Jolie. GK Films, 2011.

 

SONHOS [Yume]. Roteiro e direção de Akira Kurosawa e Ishirô Honda. Warner Bros., 1990.

SOUZA, Táscia. O silêncio que, há 50 anos, vem do Araguaia. Contee. 12 abr. 2022. Disponível em: https://contee.org.br/o-silencio-que-ha-50-anos-vem-do-araguaia/. Acesso em: 25 abr. 2023.

 

TRÉGUA de Natal. In: WIKIPÉDIA: a enciclopédia livre. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Tr%C3%A9gua_de_Natal. Acesso em: 25 abr. 2023.

 

VISNIEC, Matéi. A palavra progresso na boca da minha mãe soava terrivelmente falsa. Tradução de. Luiza Jatobá. São Paulo: É Realizações, 2012.

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