A leitura da peça teatral Ialodês de Dione Carlos (2018) estabeleceu uma ponte imediata com muitas das minhas reflexões íntimas a respeito do processo de envelhecimento em geral (e da mulher em particular) dentro da nossa tradição ocidental. Esse processo de envelhecimento que parte de uma visão de um tempo linear fundamentado na relação causa/consequência e nos reflexos que essa visão tem.
Nesse texto, portanto, pretendo fazer algumas relações entre as ideias de tempo, tradição e ancestralidade que estão presentes em Ialodês e que reverberam no poema Mosaico, de minha autoria.
Começo então por um elemento que está presente em todo o texto: a concepção do tempo e de como a vida se apresenta em relação ao tempo. Afirma Prandi: “Para os iorubás o tempo é cíclico, tudo o que acontece é repetição, nada é novidade. Aquilo que nos acontece hoje e que está prestes a acontecer no futuro imediato já foi experimentado antes por outro ser humano, por um antepassado, pelos próprios orixás” (2001, p. 52). Indo mais além dessa noção de tempo cíclico, podemos dizer que, ao final, o tempo é sempre presente:
Para os africanos tradicionais, o tempo é uma composição dos eventos que já aconteceram ou que estão para acontecer imediatamente. É a reunião daquilo que já experimentamos como realizado, sendo que o passado, imediato, está intimamente ligado ao presente, do qual é parte, enquanto o futuro nada mais é que a continuação daquilo que já começou a acontecer no presente, não fazendo nenhum sentido a idéia do futuro como acontecimento remoto desligado de nossa realidade imediata (MBITI, 1990 apud PRANDI, 2001, p. 48).
Destaco que a primeira epígrafe do texto está diretamente ligada à essa concepção de “presentificação” do tempo:
O agora é agora
O agora é passado
O agora é futuro
Uma conjuração mágica de forças passadas e futuras, no presente (SANDY, s.d. apud CARLOS, 2018, p. 62).
E essa mesma ideia do tempo-agora reaparece na fala de ONI, ampliando seu alcance em direção ao espaço:
ONI
Ontem é agora
Hoje é agora
Amanhã é agora
Agora é aqui (CARLOS, 2018, p. 91).
E é essa mesma ideia que abre o meu poema Mosaico:
A vida não é uma linha reta.
Não é nascer, crescer, envelhecer, morrer.
[...]
A vida é mosaico.
E de tanto girar em volta do sol
sigo nessa Terra meio tonta
acumulando fatos, fotos, feitos,
desafios e perdas sem conta (MONTALVÃO, 2023).
Assim, como um mosaico em que os cacos se juntam, amontoam-se e vão tomando forma, a vida-mosaico, caracterizada pelo girar em volta do sol, corresponde ao momento “agora” em que estão presentes todos os “fatos, feitos, desafios e perdas sem conta” (MONTALVÃO, 2023).
O segundo elemento que destaco é a “tradição”. Este elemento surge em duas falas de BISI que dizem de uma tradição que não é dela. No primeiro momento, ela aprendeu na escola dos outros, sob o olhar dos outros, a não confrontar o seu mosaico (CARLOS, 2018, p. 75). A vida na escola dos outros corresponde assim ao “que o sistema diz que devo ser [...] é me encaixar nas caixinhas em que você acha que devo viver” (MONTALVÃO, 2023).
A ideia que encerra meu poema retorna na fala de BISI logo adiante no texto de Dione Carlos. Dessa forma, no meu “mosaico”, digo:
Assim, me ouça e entenda:
Eu sou mosaico.
Eu era vida antes de nascer.
Serei vida depois de morrer.
Porque tudo que sou se encaixa
não nas caixinhas que você quer,
mas na figura multicolorida
que a vida segue a conceber (MONTALVÃO, 2023).
E BISI confirma o reinventar da tradição ao se ver como mosaico:
BISI
Tradição
Eu reinventei a minha
Confrontei o meu mosaico
Com espelho, vidro, cimento, ferro
[...]
Diga sim para mim
Diga sim para você (CARLOS, 2018, p. 76).
Na sequência, surge o tema da “ancestralidade”, que se conecta com o tempo agora na fala de BISI:
É isso que o mar nos diz
Alguém pensou isso antes de mim
Alguém viveu isso antes de mim
[...]
Mas eu vivo agora o que será revivido depois de mim
Alguém sonhou com você antes de você existir
Cada pessoa é o sonho de alguém
Cada pessoa é o pesadelo de alguém
Eu quero que revivam o meu melhor
Ondas gigantes
Indo e vindo
Eu sou, eu sou
É isso que o mar nos diz (CARLOS, 2018, p. 75).
Essa mesma ancestralidade no tempo-agora está presente no meu Mosaico:
A vida é mosaico.
Mosaico vivo.
Conexões que me ligam
aos meus semelhantes...
Experiências atemporais
em que sigo despedaçada
sendo mãe da minha mãe,
e pai do meu bisavô,
sendo meu próprio filho,
e filha dos meus netos.
Assim, me ouça e entenda:
Eu sou mosaico.
Eu era vida antes de nascer.
Serei vida depois de morrer (MONTALVÃO, 2023)
Assim, esses três temas - tempo, tradição e ancestralidade - fazem parte dos dois textos: “Ialodês” e “Mosaico”, a partir de um concepção particular de tempo, o tempo-agora...
Enfim, sinto que minha necessidade de colocar essas inquietações em poema se consubstanciam em manifesto, assim como o manifesto de Asali:
AYOBAMI: Asali tem algo novo
ASALI: escrevi para mim, tinha pensado em não mostrar, depois percebi que era para todas nós
FEMI: O que é íntimo é universal, Asali.
ASALI: É um manifesto
YOBAMI: Você escreveu um manifesto sobre si?
ASALI: Para mim
ONI: Sobre todas nós
ASALI: Para todas nós (CARLOS, 2018, p. 66)
Referências
CARLOS, Dione. Ialodês. In: LIMA; Ludemir (org.). Dramaturgia negra. RJ: Funarte, 2018. p. 61-92.
MONTALVÃO, Stella. Mosaico: um poema sobre o tempo e o envelhecer (Mosaic: a poem about time and aging). Disponível em: https://reflexstarlight.blogspot.com/2023/08/mosaico-um-poema-sobre-o-tempo-e-o.html Acesso em: 23 ago. 2023.
PRANDI, Reginaldo. O candomblé e o tempo: concepções de tempo, saber e autoridade da África para as religiões afro-brasileiras. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 16, n. 47, p. 43-58, out 2001. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rbcsoc/a/BZgDYKY47Nn3gdPDwRTzCLf/ Acesso em: 20 jun. 2023.
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