domingo, 22 de dezembro de 2013

ANJO VINGADOR OU COMPANHEIRO COMPASSIVO?

Em tempo de "haters", "trolls" e "bullying" cada vez mais violentos, dentro e por vezes fora da internet, muitas vezes me peguei tentando entender o que faz uma pessoa agredir a outra de forma tão incisiva, principalmente quando a outra cometeu um erro, um ato impensado, uma indiscrição. 

Recentemente, li um livro que analisa a trajetória do Jonas, aquele da baleia bíblica, de um ponto de vista psicológico. Chama-se "Caminhos da Realização - dos medos do Eu ao mergulho no Ser" de autoria de Jean-Yves Leloup. Não é uma interpretação teológica, nem fundamentada em nenhuma religião: analisa a história de Jonas como um mito, como uma representação de nosso percurso pessoal, da nossa missão como ser individual. O texto é bastante interessante e amplo, tratando de vários temas. Destaco aqui a parte dessa análise que me ajudou a entender alguns desses comportamentos e que espero seja interessante para você também. 



A história numa versão bem resumida é a seguinte: Jonas vai parar na baleia porque ele se recusa a cumprir a missão que Deus determinou pra ele: ir a Nínive, que é a capital da Assíria, morada de inimigos dos judeus, e avisar que a cidade será destruída por conta dos seus pecados. Pois bem, depois de fugir de barco, se jogar no mar e ser engolido pela baleia ele concorda em cumprir a missão. Ele segue pra Nínive e dá o recado. E o inesperado ocorre. Todo o povo de Nínive se arrepende, se penitencia e, assim, é perdoado por Deus.
Aqui surge o que mais me interessou: Jonas se revolta com o perdão de Deus dado aos moradores de Nínive. Jonas quer que Nínive seja destruída. Ele serve ao Deus da Justiça. Jonas aceita a missão de apontar os erros dos outros, mas espera que a Justiça se cumpra, que Nínive seja destruída. Ele é o anjo vingador, que traz a "verdade", mas traz também a destruição.
Assim, quando Deus perdoa o povo de Nínive, ele pede a Deus pra morrer. Ele se recusa a viver nesse mundo em que erros são compreendidos e perdoados. E se recusa a entrar na cidade; faz uma cabana do lado de fora e se isola.

Diz Leloup: “Trata-se de observarmos bem a nós mesmos e de notar este prazer que temos quando vemos alguém sofrer pelas consequências nefastas dos seus atos. Chamamos a isso de justiça. A experiência que Jonas fará é algo além da justiça. É a revelação de um outro Deus, de uma outra dimensão do Absoluto, que ele não pode imaginar que exista. Porque ele não pode imaginar que se possa perdoar a criminosos, a destruidores. Jonas tem um grande desprezo, vendo o que Deus fez. Ele se encoleriza. Ele ora ao Senhor e diz: "Bem, Senhor, não era isto o que eu mais temia? E foi por isto que eu fugi para Társis. Eu adivinhava queTu És um Deus cheio de graça e de misericórdia, refratário à cólera, rico na bondade. Agora, Senhor, retoma minha vida, porque eu prefiro morrer a viver assim".” (LELOUP, p.70) 
A grande questão para mim então é: por que Jonas não aceita servir ao Deus da Misericórdia? Segundo o autor, porque ele tem medo de amar, medo de ser compassivo e medo de perder o chão das certezas. Certezas porque quem age como Jonas acredita que detém a "verdade". Não percebe que é a" sua verdade", já que é impossível para nós, seres humanos, ter o conhecimento total, a verdade absoluta. A vingança está fundamentada exatamente nisso: no fato de que existe uma verdade que é a do erro cometido e que a justiça deve ser feita. Não há espaço para a misericórdia, não há espaço para aceitar a vontade de Deus para nossas vidas.

E aqui não falo de isentar a pessoa que cometeu o erro. Os moradores de Nínive se penitenciaram para merecer o perdão de Deus. Eles assumiram a responsabilidade dos erros cometidos e buscaram uma mudança de comportamento. Dentro de uma sociedade, é preciso responsabilizar quem comete o erro. Mas a nossa atitude de aceitar, por exemplo, que as prisões sejam impiedosas, que haja tortura e desrespeito aos seres humanos presos (sim, são seres humanos como eu e você) é servir ao Deus da Justiça, mas está fundamentada na "nossa verdade", no nosso impulso de "anjo vingador". Está fundamentada na nossa disposição de, ou sermos indulgentes com nossos erros enquanto supervalorizamos os erros dos outros, ou pior: de sermos defensores da justiça tão ferrenhos que nos impomos uma culpa enorme por cada erro cometido e queremos que os outros sejam "castigados" na mesma medida em que nos autoflagelamos.
Gosto muito da ideia de servir ao Deus da Misericórdia. Exercitar minha disposição de ver os erros e as dificuldades das pessoas com compaixão (que é diferente de "pena"). Exercitar um olhar amoroso com a dor do outro, mesmo que a dor do outro pareça tola ou até mesmo “justa”. Confesso também que não é tarefa fácil. A empatia não é uma qualidade valorizada na nossa sociedade. Ver o mundo empaticamente é, muitas vezes, visto como fraqueza, fragilidade. E nosso impulsos de vingança precisam ser domados, transmutados em compaixão. Mas todas as vezes que consegui amar assim, minha alma ficou mais leve. Esse é o meu trabalho interno mais importante. Talvez esse seja o caminho para transformar a violência em paz... 


Assim, a felicidade está em realizarmos nossa missão que, ao final das contas, é amar. Afirma Leloup: “Se nós todos somos assim e se a vida neste espaço-tempo é tão breve, não estamos aqui para envenenarmos a vida uns dos outros. Estamos aqui para tornarmos a vida a mais agradável possível, uns aos outros. O grande medo de Jonas é ser misericordioso como Deus é misericordioso. O medo de Jonas é ser Deus. Um Deus que não é apenas justo à sua imagem, que pune os maus e exalta os santos, mas um Deus que faz brilhar o seu sol sobre o ouro e sobre o lixo e que faz descer a chuva sobre os bons e sobre os maus. Jonas não quer saber se o fundo de seu coração é doce e esta doçura não é uma fraqueza, mas uma grande força. Jonas é o medo de amar, o medo de ser Deus, porque Deus é Amor. (...) O medo de Jonas é o da perda do Ser amoroso, que convida o Eu a doar-se. Quer dizer, a morrer inteligentemente, ou melhor, a morrer amorosamente. Ao ir para Társis, tentando preservar o seu Eu, Jonas não poderia senão perder-se. Morreria velho, talvez, mas sem ter vivido. Indo para Nínive, ele descobre que pode se doar. Morrer também, sem dúvida, mas não sem ter amado. É isto que podemos nos desejar uns aos outros, em conclusão desta caminhada com Jonas - é não morrermos sem antes termos vivido, é não morrermos sem antes termos amado”. (LELOUP, p.77-78)

(Sugiro a leitura completa desse livro, que é muito rico. Há uma versão digitalizada razóavel AQUI.  Esse livro pode ser adquirido facilmente também. Veja AQUI.)


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