domingo, 26 de maio de 2013

Corações Solitários: Quanta dor pode caber em um filme?

O filme norte-americano Corações Solitários (Miss Lonelyhearts) de 1958, dirigido por Vincent J. Donehue, é baseado na peça de teatro de Howard Teichmann, que por sua vez é livremente inspirada no conto Miss Lonelyhearts de Nathaniel West, publicado em 1933.


Meu primeiro contato com o conto Miss Lonelyhearts foi por meio da leitura de uma citação de um trecho bastante pungente: uma carta à Senhorita Corações Solitários em que uma garota de 16 anos pede conselhos de como lidar com o medo que seu rosto mutilado desperta em todos. Li essa citação no prefácio de um livro muito interessante chamado Estigma, do sociólogo canadense Erving Gofmann e foi essa leitura que me levou ao conto.

O conto é bastante interessante, pois tem uma estrutura narrativa bastante diferente e seu tom derrotista e de humor negro é bastante representativo do período da Grande Depressão. O enredo trata da trajetória pessoal e espiritual de um jornalista em crise que, em sua coluna de jornal, responde cartas de pessoas sofredoras endereçadas à Senhorita Corações Solitários em busca de conselhos, enquanto é atormentado pelo chefe e se afunda em generosos copos de bebida.

Já o filme retém esse mesmo enredo, mas o que é cinismo no conto é dúvida no filme. Somos levados a conhecer melhor a trajetória do jornalista, Adam White, interpretado por Montgomery Clift, sua história familiar, sua culpa e seus desejos de redenção, seu sofrimento e o amor por sua namorada. E ao conhecê-lo melhor, acabamos por nos solidarizarmos com ele.


Essa solidariedade só é possível por conta da interpretação delicada e competente que faz Montgomery Clift desse homem que, ao contrário dos demais colegas de redação, não consegue debochar das cartas que lê, ficando cada vez mais mobilizado pelo sofrimento alheio, a ponto de não conseguir mais trabalhar, atormentado por seus próprios demônios e pelo assédio moral imposto a ele por seu chefe. Seu olhar expressivo, seus gestos de desalento, sua quase ingenuidade diante do Mal são suas armas de sedução, fazendo com que soframos com ele e com todos aqueles que ele, de certa forma, representa.


Em oposição a esse jornalista está Sr. Shrike, editor-chefe do jornal, que o admite em seu jornal em busca de divertimento sádico: sua expectativa é provar mais uma vez que um homem de princípios só os tem até se decepcionar diante da vileza inexorável daqueles com quem esse homem se solidariza. A escolha do nome Shrike pelo autor do conto, e mantido no filme, é bastante significativo nesse sentido: o picanço (shrike em inglês) é uma ave de hábitos predatórios, alimenta-se de pequenos animais e tem como hábito pendurar partes de suas presas em galhos, usados como “despensa”. Robert Ryan, de Os Doze Condenados (1967) e Meu Ódio Será Sua Herança (1969), faz esse papel de forma exemplar: seu olhar cínico de abutre a espreitar sua presa, seu prazer em ver sua presa se debatendo diante das suas dúvidas existenciais e do seu desencanto diante dos outros, despertam um sentimento de repulsa profundo.

Já as mulheres desse filme, Justy, Florence Shrike e Fay Doyle, são quase patéticas: sem perspectivas, existem e agem em função de seus homens.


A namorada Justy, interpretada pela iniciante Dolores Hart, é o exemplo da menina suburbana que, com a morte da mãe, assume toda a responsabilidade de cuidar da casa e atender às necessidades do pai e dos irmãos, sem receber quase nenhum reconhecimento por isso. Além disso, trabalha fora, e é tocante a cena em que ela se vangloria de ter sido promovida de arquivista à secretária depois de dois anos de trabalho duro. Ela se ressente do fato de que seu namorado, apesar de amá-la, mantém uma certa reserva em relação ao seu próprio passado. É esse passado que, ao ser revelado, estabelece um dilema a ser enfrentado por ela. Ao final do filme, sua hesitação é vista como uma falta de amor pela qual ela precisará pedir perdão.


Florence Shrike, representada por Myrna Loy, a bela atriz mais conhecida pelos papéis de femme-fatale no cinema mudo e depois por sua participação em A Ceia dos Acusados (1934) e Ziegfeld, o Criador de Estrelas (1936), é a esposa do editor-chefe. Ela sofre por ter cometido adultério dez anos antes e nunca ter sido perdoada pelo marido ciumento, apesar de ele ter tido diversas amantes na mesma época. Esse adultério é usado frequentemente para humilhá-la, inclusive diante de outras pessoas. Sua aproximação desinteressada de Adam White é o motivo principal pelo qual seu marido o emprega no seu jornal e passa a “torturá-lo” no sentido de destruir sua fé na humanidade.


Fay Doyle é uma das pessoas que escreve para a Senhorita Corações Solitários. Com a intenção de destruir a fé de Adam White e humilhá-lo, Shrike o incita a conhecer pessoalmente as pessoas que lhe escrevem. Assim, Adam recebe, em sua casa, Fay Doyle, uma dona de casa que vive com o marido por mais de sete anos sem relações sexuais por conta de um acidente sofrido por ele. Perturbado pela história de Fay, ele se deixa seduzir por ela, para depois recusar a proposta dela de manterem um relacionamento adúltero. Essa recusa a irrita e, sentindo desprezada, ela tomará uma decisão de contornos trágicos. Essa mulher emocionalmente instável é interpretada por Maureen Stapleton, atriz que recebeu sua primeira indicação ao Oscar de Atriz Codjuvante por esse trabalho. No decorrer de sua carreira, ela recebeu essa mesma indicação por sua atuação em três outros filmes, tendo finalmente sido a ganhadora por sua atuação em Reds (1981).

É possível escolher entre o conto e o livro? Eu acho que não. Reproduzir o conto em seus aspectos inovadores seria empobrecer a experiência reflexiva proposta pelo texto. O filme utiliza-se do enredo, mas traz outra visão de mundo... Do conto amargo para o filme redentor, há uma grande distância. Ao leitor do conto, um aviso: o desfecho do filme pode decepcionar, caso você faça questão do final proposto no conto. Eu aceitei bem o final construído no filme. Um pouco de ternura, na minha opinião, não faz mal a ninguém... 

Esse filme não é, com certeza, um dos mais conhecidos no Brasil ou mesmo nos EUA. Seu diretor teve carreira breve no cinema, tendo se dedicado essencialmente aos filmes para televisão. Esse filme não foi lançado no Brasil nem mesmo em VHS. Nos EUA, também é um filme difícil de se encontrar. Ainda bem que há o YOUTUBE! É possível ver o filme completo em MISS LONELYHEARTS (1958), sem legendas.

Já o conto foi lançado no Brasil em 1985, pela Editora Brasiliense, mas atualmente está fora de catálogo. Se você quiser conhecê-lo, é possível ler sua versão original em inglês: Miss Lonelyhearts de Nathaniel West.

Download: Para o release “Lonelyhearts (1958) Montgomery Clift Eng” é possível fazer o download pelo Torrent e há legenda em português.

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