O filme norte-americano Tarde Demais de 1949, dirigido por William Wyler, é uma adaptação
da peça de teatro A Herdeira de Ruth
e Augusts Goetz, encenada pela primeira vez em 1947, e que por sua vez é
baseada na novela Washington Square
de Henry James, escrita em 1881.
O enredo é razoavelmente simples. Catherine Sloper é a herdeira de uma grande fortuna, moça sem atrativos físicos e excessivamente tímida, embora sincera, honesta, obediente e bondosa. Órfã por parte de mãe, ela tenta de todas as formas agradar ao seu pai, que a vê como uma mulher medíocre e inexpressiva.
Ao conhecer Morris Townsend, jovem bem apessoado,
inteligente e encantador, mas pobre por ter gastado toda uma pequena herança em
viagens a Europa, Catherine fica agradavelmente surpresa da atenção que esse
lhe dispensa. Essa atenção se transforma em assédio, incentivado pela tia da
moça e, na sequência, em uma proposta de casamento que desagrada profundamente
ao pai. Afirmando que o rapaz só pode estar interessado no dinheiro de sua
filha, o pai, então, promete deserdá-la, caso ela se case com Morris,
deixando-a apenas com uma pensão anual deixada pela mãe.
Catherine será capaz de desafiar a vontade do pai e
fugir com seu grande amor? Morris a ama verdadeiramente ou é apenas um
caça-dotes? Essas são as questões com que nos debatemos ao assistir ao filme.
Um enredo assim tão pueril, tão próximo de
melodramas de época, seria descartável, se não fosse a escrita de Henry James.
Primeiro, pela capacidade de construir um retrato bastante interessante de uma
classe abastada nova-iorquina que repete os erros da aristocracia inglesa que
diz desprezar. Segundo, pela delicadeza e intensidade que se utiliza para
construir suas personagens. Catherine é a moça indefesa diante dos homens de
sua vida, tentando desesperadamente agradar ao seu pai e a Morris. Artur Sloper
é o pai tirânico e frio que não vê na filha motivo de orgulho, já que ela não
atende ao que se espera de uma dama de sua classe. Tia Lavínia é a tia alcoviteira,
fantasiosa e afeita a segredos, que se encanta por Morris Townsend. E Morris
Townsend é o jovem aventureiro, inteligente e de caráter ambíguo.
Na narrativa de Henry James, em que surge o retrato
de uma mulher submetida a uma sociedade patriarcal, acompanhamos cada um desses
personagens em seus pensamentos e emoções, na trajetória que cada um traça para
si, em um texto marcado por silêncios. Como transformar esse texto em cinema?
Duas coisas fazem desse filme uma obra magistral:
um roteiro perfeito, realizado pelos mesmos autores que haviam levado esse
texto para o teatro, e uma atuação impecável dos atores que representam esses
personagens. O roteiro manteve boa parte dos diálogos mais importantes do
texto, mas destaca a fragilidade de Catherine, a dureza do pai dela, a
leviandade de sua tia e a ambiguidade de Morris. Dessa forma, o filme nos leva
a tomar o partido de Catherine e, como cúmplices, passamos a acompanhar sua
trajetória.
A interpretação de Olivia de Havilland para a
personagem de Catherine Sloper é primorosa. Cada uma das cenas é perfeita: é no
seu olhar, na sua postura, que vamos percebendo a sua dor, sua inadequação, a
sua necessidade de aprovação. E é da mesma forma que percebemos as
transformações porque passa Catherine no desenrolar da trama, culminando na
cena final em que ela verdadeiramente se supera. Esse filme tornou-se um
projeto pessoal da atriz, pois conta-se que foi ela quem assistiu à peça e
incentivou Wyler a levá-la para as telas, e lhe valeu merecidamente o Oscar de
Melhor Atriz.
Montgomery Clift interpreta o jovem Morris, e quem
senão ele para criar esse personagem tão bonito, agradável, bem-humorado,
gentil e apaixonado e dar a ele esse tom ambíguo que nos faz achá-lo perfeito
demais para ser verdade? Gosto especialmente dessa atuação dele, pois foge da
imagem de jovem atormentado que acabou se tornando sua marca. O Morris
construído por Clift é realmente o sonho de toda mulher e o pesadelo de todo
pai.
Ralph Richardson, ator inglês respeitado por sua
atuação em inúmeras peças de teatro e filmes de peso como Exodus, Spartacus e Doutor
Jivago, interpreta o pai, Arthur Sloper. O tom irônico, arrogante e cruel
que utiliza na construção de seu personagem destaca perfeitamente a fragilidade
de sua filha e constrói o perfeito contraponto para Morris, transformando cada
um dos diálogos de que participa em verdadeiro combate em que não demonstra
nenhuma compaixão. Ele já havia representado esse papel no teatro e, por sua
interpretação no filme, foi indicado ao Oscar como Melhor Ator Coadjuvante.
Miriam Hopkins interpreta perfeitamente a Tia
Lavinia, viúva provinciana que sonha com romances românticos de amores
impossíveis e que se deixa encantar por Morris, a quem considera o homem ideal
para Catherine, mesmo que haja dúvidas sobre o seu caráter. Será ela a
alcoviteira que incentivará o romance e permitirá a eles manter contato por
cartas e planejar o casamento.
Cada uma dessas interpretações faz com que Tarde Demais seja um filme memorável.
Mas é preciso destacar que, além disso, esse filme é visualmente
extraordinário, tendo sido vencedor do Oscar pela melhor direção de arte em
preto e branco e também pelo melhor figurino. E como isso não bastasse, foi
vencedor também do Oscar de melhor trilha sonora (a clássica canção francesa
“Plaisir D’Amour” é elemento importante na trama).
Enfim, quando li a novela de Henry James,
apaixonei-me imediatamente. E, no entanto, assistir ao filme foi uma
experiência ainda mais extraordinária. Isso porque o filme, na minha opinião, consegue
ser mais denso do que a própria novela, ao concentrar as suas qualidades e
descartar suas fragilidades.
Uma última observação: o título da versão em
português é péssimo, quase um spoiler.
E totalmente desnecessário, já que se poderia utilizar a tradução literal de The Heiress como A Herdeira, título que foi utilizado em todos os outros países em que ele
foi exibido. Além disso, A Herdeira é
o título da novela de Henry James em português, assim ao usar o título Tarde Demais, perde-se também essa
referência.
Maiores informações sobre a filme no IMDb, em TARDE DEMAIS (1949). E é possível assisti-lo completo no YOUTUBE, sem legendas, em: TARDE DEMAIS (1949).
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