sábado, 4 de julho de 2015

HARRY POTTER E A FILOSOFIA - ESCOLHENDO O AMOR: A REDENÇÃO DE SEVERO SNAPE

Essa é a segunda postagem que faço para comentar um livro coordenado por William Irving, professor de Filosofia da King's College da Pennsylvania e responsável pela publicação de uma série de livros no campo da "Filosofia e Cultura Popular". Fazem parte dessa coleção livros que abordam narrativas diversas, entre livros filmes e séries de televisão e até explorando o heavy metal:“Metallica e a Filosofia” e “Black Sabbath e a Filosofia”. 

Esse é o livro que trata da Saga Harry Potter e a Filosofia. O livro está dividido em cinco partes - 1. A Horcrux da Questão: Destino, Identidade e Alma; 2. A Mais Poderosa de Todas as Magias; 3. Observatório Potter: Liberdade e Política; 4. A Sala Precisa: Uma Miscelânea de Potter; e 5. Além do Véu: Morte, Esperança e Sentido.

As próximas postagens serão sobre os livros: O Hobbit e o e X-Men. Aguardem!
É sempre errado usar uma poção do amor? A morte é algo a ser temido... ou governado? O que Severo Snape pode nos ensinar sobre a possibilidade de redenção? O amor é a magia mais poderosa entre todas? Com base em todos os sete livros da série Harry Potter, A Versão Definitiva de Harry Potter e a Filosofia oferece uma mistura poderosa de intuições sobre o bem e o mal, amor, morte, poder, sacrifício e esperança. É verdade, como Dumbledore diz, que nossas escolhas revelam muito mais sobre nós do que nossas habilidades? Existe vida após a morte, e como deve ser essa vida? Aqui está uma memória penseira para seus pensamentos. Portanto, dê um bom gole do Elixir de Cérebro de Baruffio e se reúna ao Exército de Bassham de filósofos talentosos na exploração das questões profundas e capazes de expandir a mente dos livros e filmes sobre Potter.

Para dar um gostinho do livro, digitalizei aqui um dos artigos de que mais gostei. Espero que vocês gostem também!

Se quiser ler a minha postagem sobre "Star Wars e a Filosofia", siga para:


Embora Harry “sentisse um prazer selvagem em culpar Snape” pela morte de Sirius Black, atenuando seu próprio sentimento de culpa, ele não consegue fazer o Professor Dumbledore concordar com ele.”[1] De fato, Dumbledore considera Severo Snape de total confiança, apesar de todas as aparências indicarem o contrário. Pode ser tentador atribuir a suspeita de Harry à imaturidade emocional, mas, além de Dumbledore, nenhum membro da Ordem da Fênix confia com sinceridade em Snape. Depois que Snape mata Dumbledore, a Professora McGonagall murmura: “Todos nós ficávamos imaginando... mas [Dumbledore] confiava... sempre”[2] Ela continua: “Ele sempre insinuou que tinha um motivo muito forte para confiar em Snape... Dumbledore... disse-me, de forma explícita, que o arrependimento de Snape era absolutamente genuíno”.[3]5l Com tantas vidas em risco, como Dumbledore poderia ter tanta certeza de que Snape era leal c confiável?[4]

Em uma palavra, a resposta é amor - não o amor de Dumbledore por Snape, nem o de Snape por Harry, mas o amor de Snape por Lílian Potter, a mãe de Harry. Embora Lílian não corresponda ao amor romântico de Snape, este nunca deixa de amá-la, e esse amor por fim leva, de maneira indireta, contudo, à sua redenção.

Os esclarecidos 1eitores contemporâneos podem sorrir de forma indulgente diante da retórica do amor e da redenção, atribuindo-a ao sentimentalismo de J. K. Rowling. Afinal, por que pensar que o amor é um bom motivo para confiar em Snape? Fica muito claro que Snape não gosta, e mesmo odeia, Harry, Sirius e outros. Dumbledore não deveria se preocupar de que essa malícia prevalecesse? Além disso, por que pensar que Snape tenha se redimido? Esse ódio já não seria prova do contrário? Se ele tivesse se redimido, alguém poderia argumentar, então, que esses sentimentos teriam passado. Apelos ao amor e seu poder transformador estão, é claro, presentes por toda a literatura, mas tais noções não são, a princípio, apenas antiquadas, excêntricas e simplistas? O que um filósofo diria sobre uma coisa dessas? Na Verdade, os filósofos tiveram e ainda têm muito a dizer sobre o amor. Eles exploraram a natureza do amor, as variedades do amor, e mesmo a forma como o amor pode deixar-nos cegos e levar-nos a erros de julgamento. A série Potter, e Snape em particular, nos oferece uma chance de explorar tais questões também.

Snape e a Coisa Tão Esplendorosa

De Platão (cerca de 428-348 a.C.) a C. S. Lewis (1898-1963), o amor tem sido um tema recorrente e proeminente entre os grandes pensadores. Seja qual for sua fonte ou seu significado último, a coisa tão esplendorosa que é o amor tem servido de inspiração a poetas e dramaturgos, romancistas e ensaístas, filósofos e teólogos. A proeminência do amor como um tema nos livros de Potter não pode deixar de ser notada. O amor de Lílian salva e protege Harry. O amor de Harry derrota o Professor Quirrell e evita que Lorde Voldemort se apodere da mente de Harry. E a fraqueza fatal de Voldemort, Dumbledore nos diz, é ele nunca entender que o amor é a mais poderosa de todas as magias.
          
Em sua recusa a reduzir o amor a algo meramente retórico ou sentimental, Rowling une-se a uma vertente filosófica de elite. Os filósofos gregos distinguiam três tipos de amor: eros, filia e ágape. Eros, ou o amor erótico, é o tipo de amor encontrado nos relacionamentos românticos. O Sr. e a Sra. Weasley, Rony Weasley e Hermione Granger e Harry Potter e Gina Weasley são bons exemplos desse amor. Na filosofia ocidental a análise mais famosa do amor erótico está contida em O Banquete [ou Symposium] de Platão, no qual este filósofo procura mostrar como os desejos físicos rudes podem ser refinados de maneira progressiva para elevar a alma a coisas belas e divinas. Filia é o amor da amizade. É importante notar que a amizade é, de fato, uma espécie de amor - o que leva à observação triste e comovente de Dumbledore de que Voldemort nunca teve um amigo ou sequer quis um. Na Verdade, para os antigos gregos e romanos, a amizade era, em geral considerada superior ao amor romântico.[5] O terceiro tipo de amor, ágape, é o amor universal, gratuito e incondicional. Quando os evangelistas nos dizem que “Deus é amor”, é ágape que eles têm em mente.

Relatos filosóficos tradicionais sobre o amor ajudam-nos a compreender o caráter complexo de Snape, porque eles enfatizam que o amor não é fundamentalmente um sentimento, mas sim uma escolha, um ato da Vontade. De uma maneira ideal, nossas emoções estarão em harmonia com o que acreditamos ser bom, mas nós podemos agir pelo bem mesmo quando nossas emoções se rebelam. O fato de Snape continuar a ter sentimentos conflitantes não prova que ele não tenha sido transformado pelo amor. Ao contrário, a habilidade de Snape em agir de maneira consistente pelo bem dos outros, apesar de sua indiferença emocional ou mesmo de não gostar de tais pessoas, atesta a força de seu amor por Lílian.

Os Garotos Abandonados

Snape é um personagem que intriga, em parte, porque suas origens são as mesmas de Voldemort e de Harry. Como Harry e Voldemort, Snape tem sangue mestiço, o que levanta suspeita e aversão em parcelas tanto do mundo dos Trouxas quanto do mundo dos bruxos. Desesperado para se associar à família de sua mãe, os Prince, e minimizar sua ascendência Trouxa, Snape dá a si mesmo o apelido de “O Príncipe Mestiço” ou “O ‘Prince’ Mestiço”. Tendo crescido em uma casa onde os pais estavam sempre em conflito, Snape encontrou sua primeira experiência real de um lar em Hogwarts - de novo como Harry e Voldemort - usando seus poderes mágicos e fazendo alianças no mundo dos bruxos. Como Harry observa, ele, Voldemort e Snape, “os garotos abandonados, tinham todos encontrado um lar ali [em Hogwarts]”[6]. Os três também pendiam para a Sonserina, mas apenas Harry não acabou 1á.

É claro, Harry e Voldemort tomaram caminhos bastante diferentes. Voldemort optou pelo poder em detrimento do amor, o egoísmo em detrimento do altruísmo, a sedução em oposição à vulnerabilidade da amizade e de relacionamentos verdadeiros de qualquer espécie. Em nítido contraste, Harry abriu seu coração para os amigos e estava disposto a se sacrificar por aqueles a quem amava. Em vez de escolher uma psique fragmentada, como Voldemort, Harry permitiu que seus amigos o tornassem uma pessoa melhor com relação à sua integridade e totalidade.
Muito já se escreveu sobre os padrões de bem e mal que Harry e Voldemort representam respectivamente, mas e quanto a este terceiro garoto perdido, este amálgama complicado de trevas e luz, o agente duplo e assassino de Dumbledore, o protetor e adversário de Harry? O que motiva Snape?

Snape, O Oclumente

Snape é um personagem complicado não apenas por ser um agente duplo, mas porque sua lealdade fora, na verdade, dividida no passado, e sua razão e suas emoções continuam divididas. No início, Snape tinha sido um Comensal da Morte; depois de seu arrependimento, Dumbledore pede que ele assuma o perigoso papel de informante quando da volta do Lorde das Trevas. Para tanto, Snape deve conquistar a confiança total de Voldemort. Ele não pode trair sua lealdade a Dumbledore nem seu compromisso de proteger os inimigos de Voldemort, e Harry em especial. Sua raiva, e às vezes até ódio, de Harry (e outros) são reais, mas, na mesma medida, sua atitude de se colocar em risco e sua coragem de combater Voldemort são reais.
Snape não decide proteger Harry e os outros inimigos de Voldemort por ter grande afeição pessoal por eles - as delicadezas cálidas associadas à atual noção superficial e pouco substancial do “amor”. Ao contrário, ele decide agir por aquilo que sabe ser o melhor para eles, apesar de não gostar de muitos deles de maneira acentuada. O amor, entendido como o desejo do bem-estar do outro, pode ser encontrado não somente nas retratações descritivas feitas por Rowling, mas em escritores que trataram do tema do amor, desde Aristóteles a São Tomás de Aquino até M. Scott Peck, apesar da distância cultural e temporal entre eles. Eles compartilham uma compreensão do amor expresso na amizade como o desejo do bem-estar do outro apenas por causa do amor pelo outro.[7] Repetidas vezes, a decisão entre optar por promover um bem próprio aparente à custa dos outros ou sacrificar esse bem próprio pelo bem dos outros é cruel nos livros de Potter. O amor requer autossacrifício, vincula a felicidade de alguém ao bem-estar de outra pessoa, torna a pessoa vulnerável à perda e à mágoa, e fortalece seu comprometimento com o bem.

Esses pensadores enfatizam também que sentimentos fortes transformam-se em bons ou maus com relação à moral quando influenciam nossa motivação e vontade, ou seja, quando os sentimentos afetam nossa compreensão do que é bom ou mau e o modo como agimos. No caso de Snape em particular, o amor não é encontrado nos sentimentos, mas principalmente nas ações; ele se arrepende por causa do amor, e encontra a redenção ao escolher agir por amor.[8] Resumindo, é o amor de Snape por Lílian que motiva, em primeiro lugar, as ações que o levam à redenção.

Quando Dumbledore percebe que Voldemort e Harry podem compartilhar os pensamentos e emoções um do outro, ele pede a Snape que ensine Oclumência a Harry, uma técnica mágica para fechar “a mente contra a intrusão e influência mágicas”.[9] Voldemort tem uma habilidade notável de obter acesso a pensamentos e lembranças dos outros, tornando a detecção de mentiras algo quase certo. “Apenas aqueles peritos em Oclumência”, diz Snape, “são capazes de ocultar e bloquear aqueles sentimentos e lembranças que contradizem a mentira e assim dizer falsidades em sua presença sem que sejam detectados.” [10] Enquanto agente duplo de Dumbledore, Snape consegue com regularidade o que poucos são capazes de fazer sequer uma vez: mentir com sucesso perante Voldemort. Snape é bem-sucedido não apenas devido à inteligência e astúcia, revelando informações suficientes a fim de parecer um informante valioso enquanto retém os pontos mais importantes, mas também por meio de uma completa proeza mágica.

A perícia de Snape em Oclumência revela tanto sua força quanto sua fraqueza de caráter. O Oclumente bem-sucedido está vazio de emoções pessoais, algo que Harry não consegue. Snape fala de maneira furiosa: “Os tolos que mostram clara e abertamente seus sentimentos através de suas atitudes, que não conseguem controlar suas emoções, que chafurdam em lembranças tristes e permitem-se ser provocados com facilidade - em outras palavras, pessoas fracas - não têm qualquer chance contra os poderes [de Voldemort]!”[11] Snape sobrevive não por renunciar ao seu amor por Lílian da maneira que Voldemort tinha renunciado ao amor e à amizade. Antes, Snape oculta seu amor de Voldemort Embora essa habilidade de esconder lembranças e emoções seja crucial para seu papel de agente duplo, ela também isola Snape da amizade. Os capítulos finais de As Relíquias da Morte revelam a profundidade do sacrifício e da coragem de Snape. Quando está morrendo por conta da picada de Nagini, Snape transmite a Harry uma avalanche de lembranças revelando o seu amor por Lílian e a proteção secreta aos inimigos de Voldemort. Snape permanece o perfeito Oclumente. Suas lembranças não podem ser tiradas à força; elas devem ser oferecidas livremente. Apenas quando está morrendo ele permite a Harry o acesso aos seus pensamentos e sentimentos, relevando que Harry é uma Horcrux  e mostrando a ele o que deve ser feito para derrotar Voldemort.

A Escolha de Snape

Desde a infância, Snape ama Lílian Evans, embora de maneira egoísta no início. Ele a observa com “cobiça indisfarçável” enquanto sonha com Hogwarts, como uma fuga de sua família e uma maneira de obter aceitação do mundo da magia, apesar de sua ascendência meio-trouxa.[12] Em Hogwarts, no entanto, ele ainda é um desajeitado forasteiro, lutando agora com Tiago Potter, para quem tudo, em especial magia e Quadribol vem com grande facilidade. Pior, Snape sabe que Thiago Potter está apaixonado por Lílian.

O amor de Snape por Lílian começa a redimi-lo, ainda que de modo lento a princípio. Quando Lílian é uma criança, ela pergunta a Snape se o fato de ter nascido Trouxa faz diferença; depois de hesitar, ele responde que não. Quando Lílian é uma adolescente, tendo refutado a antiga crença falsa de Snape sobre a superioridade do sangue bruxo, ela o defende contra Tiago e seus amigos, apenas para ouvir o mortificado Snape chamá-la de Sangue-ruim. Ele pede desculpas, mas Lílian recusa-se a defendê-lo dali em diante. Com a amizade desfeita, Snape opta pela Magia Negra e os Comensais da Morte. Mais tarde, contudo, ele se lembraria dessa lição dolorosa e cara e, como diretor, repreende o retrato de Fineus Nigellus por referir-se a Hermione Granger como uma Sangue-ruim.

Depois de contar a Voldemort, de forma obediente, a profecia que ouviu por acaso sobre a criança que desafiaria o Lorde das Trevas, Snape implora a Dumbledore que proteja Lílian. Dumbledore pergunta: “Você não poderia implorar misericórdia pela mãe, em troca do filho?”. Snape assegura a Dumbledore que tentou, ao que Dumbledore responde: “Você me dá nojo... Você não se importa, então, com as mortes do marido e do filho dela? Eles podem morrer desde que você consiga o que quer?”[13]. O amor de Snape ainda não é puro; ele não ama Lílian como o que Aristóteles chama de um “segundo eu”[14] Antes, ele deseja o bem de Lílian no que se refere a ele. Se ele tivesse desejado o bem de Lílian por amor a ela mesma, ele teria o intento de proteger aqueles que eram os mais preciosos para ela, também. Snape cede, prometendo “qualquer coisa” em troca da proteção de Dumbledore à família. Depois da morte de Lílian, Dumbledore pede a Snape para agir conforme seu amor por Lílían, protegendo seu filho amado.

O amor romântico de Snape por Lílian está contaminado pelo egoísmo no início, mas ele aprofunda-se ao aceitar o papel que Dumbledore propõe. Platão reflete sobre uma forma similar de aprofundamento do amor em O Banquete, o qual apresenta vários personagens tentando descrever e louvar o amor. Em O Banquete, a professora de Sócrates, Diotima, afirma: “Amar é ansiar possuir o bem para sempre”[15].68 A “posse” do bem não é a satisfação do desejo egoísta de um eros superficial que valoriza o ser amado por aquilo que ele oferece àquele que ama, mas é, ao contrário, um vínculo com o ser amado que leva aquele que ama em direção ao ser amado como um bem independente. Aquele que ama busca “dar à luz em beleza”, seja a crianças ou a ideias e virtudes.[16] O amor abre-se ao eterno ao estender o amor dos pais aos seus filhos ou ao construir virtude e amor a partir daquilo que é transcendente naquele que ama. Rowling dá exemplo de ambos os casos. Por amor, Tiago e Lílian sacrificam-se, de forma voluntária, um pelo outro e por Harry. O amor romântico de Snape por Lílian, embora não correspondido, de fato “traz à 1uz”, de maneira gradual a virtude em Snape. Depois que Snape se compromete a combater Voldemort, o egoísmo anterior, por fim, desvanece.

Refletindo sobre o refinamento do amor romântico no contexto na tradição cristã, o Papa Bento XVI comenta que “o amor visa à eternidade. Sim, o amor é êxtase, não no sentido de um instante de inebriamento, mas como caminho, como êxodo permanente do eu fechado em si mesmo para a sua libertação no dom de si.”[17] O amor de Snape por Lílian o impulsiona para além do desejo egoísta e o transforma de maneira fundamental. O amor de Snape por Lílian, que continua mesmo após a morte dela, encoraja-o a escolher atitudes que, de maneira gradual tornam o amor dele mais parecido com o dela, voltado ao bem dos outros e capaz de autossacrifício. Seu amor por Lílian o 1eva a se colocar, como Tiago e Lílian, entre Voldemort e Harry.

Um Trabalho em Andamento

A decisão de Snape de combater Voldemort e proteger Harry permanece firme, mas seu caráter não muda de maneira instantânea. Aqui, podemos ver o dano do Vício e o trabalho da Virtude: ambos são hábitos, construídos ao longo do tempo. A mudança dos sentimentos e do comportamento de alguém requer vigilância e esforço. Exigindo que Dumbledore mantenha seu papel em segredo, Snape ainda se enfurece com seus atormentadores diários na escola, vendo em Harry toda a arrogância de Tiago e divertindo-se com seus fracassos e punições.[18] A semelhança física de Harry com Tiago deixa Snape cego aos traços de caráter compartilhados por Harry e sua mãe. Os padrões emocionais e de comportamento de Snape continuam a bloquear amizades, mas ao menos suas ações o unem à causa daqueles que combatem Voldemort.

Snape também continua a compartilhar, de modo parcial, a juízo falso de Voldemort de que aqueles que guiam suas ações pelo amor são fracos. Snape cospe esse insulto a Harry durante as aulas de Oclumência. Harry é fraco porque não consegue esconder seus pensamentos e sentimentos de amor. Da mesma forma, quando Snape encontra o Patrono modificado de Ninfadora Tonks, ele escarnece: “Eu acho que você estava melhor com o anterior... O novo parece fraco”.[19]72 Em situações raras, “um grande choque... [ou] uma comoção emocional” pode modificar um Patrono.[20] Tonks apaixonou-se por Remo Lupin (um 1obisomem) e seu Patrono é agora um 1obo. É possível presumir que o lobo em si não “parece fraco”. Em vez disso, a mudança é evidência de seu amor, ou, de maneira alternativa, evidência de que o amor a transformou. É esse amor - em particular pelo desprezado Lupin – que Snape acha fraco. Mas o próprio patrono de Snape, uma corça, oferece testemunho eloquente contra sua assertiva. O amor de Snape por Lílian alterou o Patrono daquele para se corresponder e harmonizar ao desta. Sua defesa mais forte contra ameaças mágicas é agora um emblema de sua amada e sua transformação pelo amor - apesar da habilidade de Snape em bloquear suas emoções e lembranças.

O Patrono de Snape demonstra a noção de Aristóteles do ser amado enquanto um segundo eu; é tanto uma extensão mágica de si mesmo quanto uma manifestação de seu amor por Lílian. Da mesma forma, Harry é protegido pelo amor de seus pais: seu Patrono é o cervo de Tiago, e o amor, a ponto do autossacrifício, de Lílian transforma-se literalmente em parte de seu corpo, protegendo-o de Voldemort. Em contraste, Voldemort protege-se criando Horcruxes. Por amor, confia-se parte da própria alma ao outro, desta maneira um amigo compartilha as alegrias e tristezas do outro e age pelo bem deste, mesmo quando o sacrifício é exigido. A amizade fortalece a integridade da almaz: amigos tornam-se pessoas melhores agindo pelo bem dos outros e construindo virtude. Em suma, amar nos faz humanos de uma forma mais completa. Mas Voldemort confia sua alma a objetos que não podem compartilhar suas alegrias e tristezas ou exigir qualquer coisa dele. Com as Horcruxes, Voldcmort tem oito “eus”, mas cada divisão de sua alma o torna menos humano.

Snape consegue agir com coragem, não em razão de suas crenças e emoções anteriores terem sido expurgadas no todo, mas porque ele escolhe, de maneira deliberada, agir em conformidade com o amor – no sentido de fazer o que é melhor para os outros. Neste ponto, a coragem de Harry e a de Snape são semelhantes porque, para cada um deles, um ato de vontade é exigido para renunciar ao que se quer e escolher o autossacrifício de forma consciente. Harry mostra que o amor conquista a morte por meio do livre autossacrifício. Antes de reagir apenas (mesmo que de forma virtuosa), Harry escolhe de modo consciente. Harry observa como teria sido mais fácil uma morte escolhida no momento, como se jogar na frente de uma maldição, como seus pais fizeram.[21]

De forma semelhante, Snape não fez seu sacrifício pelo bem em um único ato dramático.[22] Ele optou, de modo consciente, e por anos, pela perigosa atividade de conciliar a proteção de Harry com o disfarce de comensal da Morte. Essa tarefa é ainda mais difícil (e um ato claro de vontade), porque Snape age principalmente pelo amor a Lílian, não a Harry. Ele quer o bem de Harry por amor à mãe, mas, apesar disso ele age para proteger Harry.

Por fim, o amor é a chave para a redenção de Snape porque permite que ele sinta remorso, um sentimento que ele compartilha com Harry, mas não com Voldemort. Atos de maldade danificam a alma, mas o remorso pode começar a emendá-la, curá-la e torná-la inteira. O remorso de Snape não erradica, por si só, anos de ressentimento; a diferença é que ele não permite que a raiva e o ódio coordenem suas ações. Apesar desses sentimentos, ele consegue escolher agir pelo bem. Tais atos são um testemunho tanto de seu amor por Lílian quanto da materialidade da sua redenção. O amor e o remorso de Snape não são principalmente evidentes em seus estados emocionais, mas o são em seus atos de vontade contínuos no sentido de buscar o bem do outro.

Harry demonstra remorso ao perdoar Snape, purificando-se da mesma forma. Ao longo da série, Snape e Harry travam uma batalha particular marcada por suspeitas cautelosas e ódio sincero. Após a morte de Sirius, Harry culpa Snape por instigar Sirius a entrar de pronto na batalha no Ministério: “Snape tinha se colocado eterna e irrevogavelmente além da possibilidade de ser perdoado por Harry devido a sua atitude em relação a Sirius”.[23] Nas cenas finais de As Relíquias da Morte, no entanto, vemos que Harry perdoou Snape. Anos mais tarde, Harry conta ao seu filho do meio: “Alvo Severo... seu nome foi inspirado em dois diretores de Hogwarts. Um deles era da Sonserina e foi provavelmente o homem mais corajoso que já conheci”.[24] Harry e Gina deram aos seus filhos os nomes de pessoas que combateram Voldemort e escolheram sacrificar seu próprio bem pelo bem dos outros - Tiago, Lílian, Dumbledore e Snape.

O amor não transforma de maneira fácil ou imediata. Mas o que vemos em Severo Snape é que o amor pode transformar uma vida de forma radical. Snape não fica com a garota, mas seu amor profundo por Lílian muda suas crenças e ações. Esse amor motiva-o a perseverar em seu papel perigoso e solitário de agente duplo. Por causa do amor, Snape é capaz de sacrificar-se a si mesmo, como Lílian - e Harry.




[1] A Ordem da Fênix, p. 833.
[2] O Enigma do Príncipe, p. 615.
[3] Ibid, 616.
[4] Também é possível, é claro, que Dumbledore tivesse uma prova “inabalável” da lealdade de Snape por meio da Legilimência (talvez com o consentimento de Snape.)
[5] Aristóteles, por exemplo, dedica cerca de um quinto de Ética a Nicômaco, seu grande trabalho sobre a felicidade e satisfação humanas, ao tópico da amizade.
[6] As Relíquias da Morte, p. 697.
[7] Afirma Aristóteles: “Aqueles que desejam o bem de seus amigos apenas pelo bem deles ou amor a eles são os amigos mais verdadeiros, porque cada um ama o outro pelo que ele é, e não por qualquer qualidade incidental”, Ética a Nicômaco, 1156b10. Tomás de Aquino cita Aristóteles de maneira explícita quando afirma que “amar é querer o bem do outro”, Suma Teológica, HI, 26, 4ad. No mesmo sentido, o mais atual M. Scott Peck define amor como “a Vontade de estender o próprio eu com a finalidade de nutrir o próprio crescimento espiritual do outro”. Veja M. Scott Peck, The Road Less Taken: A New Psychology of Love, Traditional Values and Spiritual Growth (Nova York: Simon & Schuster, 1978), p. 81.
[8] É claro, nem todas as ações de Snape são boas, analisadas tanto por um critério interno quanto externo. De um ponto de vista externo, o assassinato de Dumbledore cometido por Snape não é objetivamente bom, mas dentro da lógica dos livros, parece ser apresentado como bom em ao menos algum sentido, ou no mínimo admissíve1. Além disso, as contínuas ações hostis de Snape com relação a Sirius não são, a toda evidência, boas, e nem o são suas atitudes hostis com relação aos alunos (bullying). Mas o argumento não é que Snape tenha se tornado bom por meio do amor, mas que, de maneira gera1, Snape enfim age pelo bem dos outros.
[9] A Ordem da Fênix, p. 530.
[10] Ibid, p. 531.
[11] Ibid, p. 536
[12] Ibid, p. 536.
[13] Ibid, p. 677.
[14] Aristóteles, Ética a Nicômaco, 1166a31.
[15] Symposium (O Banquete), 2o6a, traduzido para o inglês por Alexander Nehamas o Paul Woodruff, em Plato: Complete Works, editado por John M. Cooper (Indianápolis: Hackett, 1997).
[16] O Banquete, 2o6b. Veja também 2o86 e os parágrafos seguintes. Os aspectos gerais sobre a natureza do amor, citados anteriormente, encaixam-se bem ao retrato de amor nos livros de Potter. O amor materno de Lílian Potter é o exemplo central de amor na série. Note, também, que o duelo de Molly Weasley com Belatriz Lestrange, no qual ela luta de forma explícita para proteger seus filhos (e os filhos de outros), recebe destaque especial na batalha final, ficando atrás apenas do duelo de Harry com Voldemort.
[17] Deus Caristas Est, parágrafo 6. Bento continua sua análise cristã do amor, afirmando que esse dom de si oferece tanto “o reencontro de si mesmo, mais ainda para a descoberta de Deus: “Quem procurar salvaguardar a vida, perdê-la-á, e quem a perder, conservá-la-á” (Lc17,33). (ibid.) O sacrifício que Harry faz da própria vida no fim do livro As Relíquias da Morte parece estar fundado neste mesmo princípio.
[18] Resignado, Dumbledore concorda: “Eu nunca revelarei o seu melhor”, As Relíquias da Morte, p. 679.
[19] O Enigma do Príncipe, p. 160.
[20] Ibid, p. 340.
[21] As alusões cristãs, em especial em As Relíquias da Morte, são evidentes; dentre elas, o herói que conquista a morte ao sacrificar sua vida, por sua própria vontade, para salvar os outros; os versos da Escritura nas lápides em Godric’s Hollow; a afirmação de almas imortais e a escolha da Estação de King’s Cross como o destino entre-mundos de Harry.
[22] Apesar de insistir no segredo de seu papel, Snape enfurece-se com a acusação de covardia que Harry lhe dirige, e podemos presumir que isso se deve ao propósito e ao risco contínuo de sua tarefa.
[23] O Enigma do Príncipe, p. 161.
[24] As Relíquias da Morte, p. 758.

2 comentários:

VaneHsan disse...

Sou uma grande fã do personagem Severo Snape...parabéns pela sua análise filosófica que me fez sentir pela primeira vez a aproximacão profunda do carater fictício de um personagem ou vários com o real e até me fez chorar (Snape odiaria isso rsrsrs).Nem todos têm essa capacidade ou não dão tanta importância.Talvez nem a própria JK Rowling tenha tido essa percepção.Obrigada!

VaneHsan disse...

Sou uma grande fã do personagem Severo Snape...parabéns pela sua análise filosófica que me fez sentir pela primeira vez a aproximacão profunda do carater fictício de um personagem ou vários com o real e até me fez chorar (Snape odiaria isso rsrsrs).Nem todos têm essa capacidade ou não dão tanta importância.Talvez nem a própria JK Rowling tenha tido essa percepção.Obrigada!