sábado, 4 de julho de 2015

HARRY POTTER E A FILOSOFIA - ESCOLHENDO O AMOR: A REDENÇÃO DE SEVERO SNAPE

Essa é a segunda postagem que faço para comentar um livro coordenado por William Irving, professor de Filosofia da King's College da Pennsylvania e responsável pela publicação de uma série de livros no campo da "Filosofia e Cultura Popular". Fazem parte dessa coleção livros que abordam narrativas diversas, entre livros filmes e séries de televisão e até explorando o heavy metal:“Metallica e a Filosofia” e “Black Sabbath e a Filosofia”. 

Esse é o livro que trata da Saga Harry Potter e a Filosofia. O livro está dividido em cinco partes - 1. A Horcrux da Questão: Destino, Identidade e Alma; 2. A Mais Poderosa de Todas as Magias; 3. Observatório Potter: Liberdade e Política; 4. A Sala Precisa: Uma Miscelânea de Potter; e 5. Além do Véu: Morte, Esperança e Sentido.

As próximas postagens serão sobre os livros: O Hobbit e o e X-Men. Aguardem!
É sempre errado usar uma poção do amor? A morte é algo a ser temido... ou governado? O que Severo Snape pode nos ensinar sobre a possibilidade de redenção? O amor é a magia mais poderosa entre todas? Com base em todos os sete livros da série Harry Potter, A Versão Definitiva de Harry Potter e a Filosofia oferece uma mistura poderosa de intuições sobre o bem e o mal, amor, morte, poder, sacrifício e esperança. É verdade, como Dumbledore diz, que nossas escolhas revelam muito mais sobre nós do que nossas habilidades? Existe vida após a morte, e como deve ser essa vida? Aqui está uma memória penseira para seus pensamentos. Portanto, dê um bom gole do Elixir de Cérebro de Baruffio e se reúna ao Exército de Bassham de filósofos talentosos na exploração das questões profundas e capazes de expandir a mente dos livros e filmes sobre Potter.

Para dar um gostinho do livro, digitalizei aqui um dos artigos de que mais gostei. Espero que vocês gostem também!

Se quiser ler a minha postagem sobre "Star Wars e a Filosofia", siga para:


Embora Harry “sentisse um prazer selvagem em culpar Snape” pela morte de Sirius Black, atenuando seu próprio sentimento de culpa, ele não consegue fazer o Professor Dumbledore concordar com ele.”[1] De fato, Dumbledore considera Severo Snape de total confiança, apesar de todas as aparências indicarem o contrário. Pode ser tentador atribuir a suspeita de Harry à imaturidade emocional, mas, além de Dumbledore, nenhum membro da Ordem da Fênix confia com sinceridade em Snape. Depois que Snape mata Dumbledore, a Professora McGonagall murmura: “Todos nós ficávamos imaginando... mas [Dumbledore] confiava... sempre”[2] Ela continua: “Ele sempre insinuou que tinha um motivo muito forte para confiar em Snape... Dumbledore... disse-me, de forma explícita, que o arrependimento de Snape era absolutamente genuíno”.[3]5l Com tantas vidas em risco, como Dumbledore poderia ter tanta certeza de que Snape era leal c confiável?[4]

Em uma palavra, a resposta é amor - não o amor de Dumbledore por Snape, nem o de Snape por Harry, mas o amor de Snape por Lílian Potter, a mãe de Harry. Embora Lílian não corresponda ao amor romântico de Snape, este nunca deixa de amá-la, e esse amor por fim leva, de maneira indireta, contudo, à sua redenção.

Os esclarecidos 1eitores contemporâneos podem sorrir de forma indulgente diante da retórica do amor e da redenção, atribuindo-a ao sentimentalismo de J. K. Rowling. Afinal, por que pensar que o amor é um bom motivo para confiar em Snape? Fica muito claro que Snape não gosta, e mesmo odeia, Harry, Sirius e outros. Dumbledore não deveria se preocupar de que essa malícia prevalecesse? Além disso, por que pensar que Snape tenha se redimido? Esse ódio já não seria prova do contrário? Se ele tivesse se redimido, alguém poderia argumentar, então, que esses sentimentos teriam passado. Apelos ao amor e seu poder transformador estão, é claro, presentes por toda a literatura, mas tais noções não são, a princípio, apenas antiquadas, excêntricas e simplistas? O que um filósofo diria sobre uma coisa dessas? Na Verdade, os filósofos tiveram e ainda têm muito a dizer sobre o amor. Eles exploraram a natureza do amor, as variedades do amor, e mesmo a forma como o amor pode deixar-nos cegos e levar-nos a erros de julgamento. A série Potter, e Snape em particular, nos oferece uma chance de explorar tais questões também.

Snape e a Coisa Tão Esplendorosa

De Platão (cerca de 428-348 a.C.) a C. S. Lewis (1898-1963), o amor tem sido um tema recorrente e proeminente entre os grandes pensadores. Seja qual for sua fonte ou seu significado último, a coisa tão esplendorosa que é o amor tem servido de inspiração a poetas e dramaturgos, romancistas e ensaístas, filósofos e teólogos. A proeminência do amor como um tema nos livros de Potter não pode deixar de ser notada. O amor de Lílian salva e protege Harry. O amor de Harry derrota o Professor Quirrell e evita que Lorde Voldemort se apodere da mente de Harry. E a fraqueza fatal de Voldemort, Dumbledore nos diz, é ele nunca entender que o amor é a mais poderosa de todas as magias.
          
Em sua recusa a reduzir o amor a algo meramente retórico ou sentimental, Rowling une-se a uma vertente filosófica de elite. Os filósofos gregos distinguiam três tipos de amor: eros, filia e ágape. Eros, ou o amor erótico, é o tipo de amor encontrado nos relacionamentos românticos. O Sr. e a Sra. Weasley, Rony Weasley e Hermione Granger e Harry Potter e Gina Weasley são bons exemplos desse amor. Na filosofia ocidental a análise mais famosa do amor erótico está contida em O Banquete [ou Symposium] de Platão, no qual este filósofo procura mostrar como os desejos físicos rudes podem ser refinados de maneira progressiva para elevar a alma a coisas belas e divinas. Filia é o amor da amizade. É importante notar que a amizade é, de fato, uma espécie de amor - o que leva à observação triste e comovente de Dumbledore de que Voldemort nunca teve um amigo ou sequer quis um. Na Verdade, para os antigos gregos e romanos, a amizade era, em geral considerada superior ao amor romântico.[5] O terceiro tipo de amor, ágape, é o amor universal, gratuito e incondicional. Quando os evangelistas nos dizem que “Deus é amor”, é ágape que eles têm em mente.

Relatos filosóficos tradicionais sobre o amor ajudam-nos a compreender o caráter complexo de Snape, porque eles enfatizam que o amor não é fundamentalmente um sentimento, mas sim uma escolha, um ato da Vontade. De uma maneira ideal, nossas emoções estarão em harmonia com o que acreditamos ser bom, mas nós podemos agir pelo bem mesmo quando nossas emoções se rebelam. O fato de Snape continuar a ter sentimentos conflitantes não prova que ele não tenha sido transformado pelo amor. Ao contrário, a habilidade de Snape em agir de maneira consistente pelo bem dos outros, apesar de sua indiferença emocional ou mesmo de não gostar de tais pessoas, atesta a força de seu amor por Lílian.

Os Garotos Abandonados

Snape é um personagem que intriga, em parte, porque suas origens são as mesmas de Voldemort e de Harry. Como Harry e Voldemort, Snape tem sangue mestiço, o que levanta suspeita e aversão em parcelas tanto do mundo dos Trouxas quanto do mundo dos bruxos. Desesperado para se associar à família de sua mãe, os Prince, e minimizar sua ascendência Trouxa, Snape dá a si mesmo o apelido de “O Príncipe Mestiço” ou “O ‘Prince’ Mestiço”. Tendo crescido em uma casa onde os pais estavam sempre em conflito, Snape encontrou sua primeira experiência real de um lar em Hogwarts - de novo como Harry e Voldemort - usando seus poderes mágicos e fazendo alianças no mundo dos bruxos. Como Harry observa, ele, Voldemort e Snape, “os garotos abandonados, tinham todos encontrado um lar ali [em Hogwarts]”[6]. Os três também pendiam para a Sonserina, mas apenas Harry não acabou 1á.

É claro, Harry e Voldemort tomaram caminhos bastante diferentes. Voldemort optou pelo poder em detrimento do amor, o egoísmo em detrimento do altruísmo, a sedução em oposição à vulnerabilidade da amizade e de relacionamentos verdadeiros de qualquer espécie. Em nítido contraste, Harry abriu seu coração para os amigos e estava disposto a se sacrificar por aqueles a quem amava. Em vez de escolher uma psique fragmentada, como Voldemort, Harry permitiu que seus amigos o tornassem uma pessoa melhor com relação à sua integridade e totalidade.
Muito já se escreveu sobre os padrões de bem e mal que Harry e Voldemort representam respectivamente, mas e quanto a este terceiro garoto perdido, este amálgama complicado de trevas e luz, o agente duplo e assassino de Dumbledore, o protetor e adversário de Harry? O que motiva Snape?

Snape, O Oclumente

Snape é um personagem complicado não apenas por ser um agente duplo, mas porque sua lealdade fora, na verdade, dividida no passado, e sua razão e suas emoções continuam divididas. No início, Snape tinha sido um Comensal da Morte; depois de seu arrependimento, Dumbledore pede que ele assuma o perigoso papel de informante quando da volta do Lorde das Trevas. Para tanto, Snape deve conquistar a confiança total de Voldemort. Ele não pode trair sua lealdade a Dumbledore nem seu compromisso de proteger os inimigos de Voldemort, e Harry em especial. Sua raiva, e às vezes até ódio, de Harry (e outros) são reais, mas, na mesma medida, sua atitude de se colocar em risco e sua coragem de combater Voldemort são reais.
Snape não decide proteger Harry e os outros inimigos de Voldemort por ter grande afeição pessoal por eles - as delicadezas cálidas associadas à atual noção superficial e pouco substancial do “amor”. Ao contrário, ele decide agir por aquilo que sabe ser o melhor para eles, apesar de não gostar de muitos deles de maneira acentuada. O amor, entendido como o desejo do bem-estar do outro, pode ser encontrado não somente nas retratações descritivas feitas por Rowling, mas em escritores que trataram do tema do amor, desde Aristóteles a São Tomás de Aquino até M. Scott Peck, apesar da distância cultural e temporal entre eles. Eles compartilham uma compreensão do amor expresso na amizade como o desejo do bem-estar do outro apenas por causa do amor pelo outro.[7] Repetidas vezes, a decisão entre optar por promover um bem próprio aparente à custa dos outros ou sacrificar esse bem próprio pelo bem dos outros é cruel nos livros de Potter. O amor requer autossacrifício, vincula a felicidade de alguém ao bem-estar de outra pessoa, torna a pessoa vulnerável à perda e à mágoa, e fortalece seu comprometimento com o bem.

Esses pensadores enfatizam também que sentimentos fortes transformam-se em bons ou maus com relação à moral quando influenciam nossa motivação e vontade, ou seja, quando os sentimentos afetam nossa compreensão do que é bom ou mau e o modo como agimos. No caso de Snape em particular, o amor não é encontrado nos sentimentos, mas principalmente nas ações; ele se arrepende por causa do amor, e encontra a redenção ao escolher agir por amor.[8] Resumindo, é o amor de Snape por Lílian que motiva, em primeiro lugar, as ações que o levam à redenção.

Quando Dumbledore percebe que Voldemort e Harry podem compartilhar os pensamentos e emoções um do outro, ele pede a Snape que ensine Oclumência a Harry, uma técnica mágica para fechar “a mente contra a intrusão e influência mágicas”.[9] Voldemort tem uma habilidade notável de obter acesso a pensamentos e lembranças dos outros, tornando a detecção de mentiras algo quase certo. “Apenas aqueles peritos em Oclumência”, diz Snape, “são capazes de ocultar e bloquear aqueles sentimentos e lembranças que contradizem a mentira e assim dizer falsidades em sua presença sem que sejam detectados.” [10] Enquanto agente duplo de Dumbledore, Snape consegue com regularidade o que poucos são capazes de fazer sequer uma vez: mentir com sucesso perante Voldemort. Snape é bem-sucedido não apenas devido à inteligência e astúcia, revelando informações suficientes a fim de parecer um informante valioso enquanto retém os pontos mais importantes, mas também por meio de uma completa proeza mágica.

A perícia de Snape em Oclumência revela tanto sua força quanto sua fraqueza de caráter. O Oclumente bem-sucedido está vazio de emoções pessoais, algo que Harry não consegue. Snape fala de maneira furiosa: “Os tolos que mostram clara e abertamente seus sentimentos através de suas atitudes, que não conseguem controlar suas emoções, que chafurdam em lembranças tristes e permitem-se ser provocados com facilidade - em outras palavras, pessoas fracas - não têm qualquer chance contra os poderes [de Voldemort]!”[11] Snape sobrevive não por renunciar ao seu amor por Lílian da maneira que Voldemort tinha renunciado ao amor e à amizade. Antes, Snape oculta seu amor de Voldemort Embora essa habilidade de esconder lembranças e emoções seja crucial para seu papel de agente duplo, ela também isola Snape da amizade. Os capítulos finais de As Relíquias da Morte revelam a profundidade do sacrifício e da coragem de Snape. Quando está morrendo por conta da picada de Nagini, Snape transmite a Harry uma avalanche de lembranças revelando o seu amor por Lílian e a proteção secreta aos inimigos de Voldemort. Snape permanece o perfeito Oclumente. Suas lembranças não podem ser tiradas à força; elas devem ser oferecidas livremente. Apenas quando está morrendo ele permite a Harry o acesso aos seus pensamentos e sentimentos, relevando que Harry é uma Horcrux  e mostrando a ele o que deve ser feito para derrotar Voldemort.

A Escolha de Snape

Desde a infância, Snape ama Lílian Evans, embora de maneira egoísta no início. Ele a observa com “cobiça indisfarçável” enquanto sonha com Hogwarts, como uma fuga de sua família e uma maneira de obter aceitação do mundo da magia, apesar de sua ascendência meio-trouxa.[12] Em Hogwarts, no entanto, ele ainda é um desajeitado forasteiro, lutando agora com Tiago Potter, para quem tudo, em especial magia e Quadribol vem com grande facilidade. Pior, Snape sabe que Thiago Potter está apaixonado por Lílian.

O amor de Snape por Lílian começa a redimi-lo, ainda que de modo lento a princípio. Quando Lílian é uma criança, ela pergunta a Snape se o fato de ter nascido Trouxa faz diferença; depois de hesitar, ele responde que não. Quando Lílian é uma adolescente, tendo refutado a antiga crença falsa de Snape sobre a superioridade do sangue bruxo, ela o defende contra Tiago e seus amigos, apenas para ouvir o mortificado Snape chamá-la de Sangue-ruim. Ele pede desculpas, mas Lílian recusa-se a defendê-lo dali em diante. Com a amizade desfeita, Snape opta pela Magia Negra e os Comensais da Morte. Mais tarde, contudo, ele se lembraria dessa lição dolorosa e cara e, como diretor, repreende o retrato de Fineus Nigellus por referir-se a Hermione Granger como uma Sangue-ruim.

Depois de contar a Voldemort, de forma obediente, a profecia que ouviu por acaso sobre a criança que desafiaria o Lorde das Trevas, Snape implora a Dumbledore que proteja Lílian. Dumbledore pergunta: “Você não poderia implorar misericórdia pela mãe, em troca do filho?”. Snape assegura a Dumbledore que tentou, ao que Dumbledore responde: “Você me dá nojo... Você não se importa, então, com as mortes do marido e do filho dela? Eles podem morrer desde que você consiga o que quer?”[13]. O amor de Snape ainda não é puro; ele não ama Lílian como o que Aristóteles chama de um “segundo eu”[14] Antes, ele deseja o bem de Lílian no que se refere a ele. Se ele tivesse desejado o bem de Lílian por amor a ela mesma, ele teria o intento de proteger aqueles que eram os mais preciosos para ela, também. Snape cede, prometendo “qualquer coisa” em troca da proteção de Dumbledore à família. Depois da morte de Lílian, Dumbledore pede a Snape para agir conforme seu amor por Lílían, protegendo seu filho amado.

O amor romântico de Snape por Lílian está contaminado pelo egoísmo no início, mas ele aprofunda-se ao aceitar o papel que Dumbledore propõe. Platão reflete sobre uma forma similar de aprofundamento do amor em O Banquete, o qual apresenta vários personagens tentando descrever e louvar o amor. Em O Banquete, a professora de Sócrates, Diotima, afirma: “Amar é ansiar possuir o bem para sempre”[15].68 A “posse” do bem não é a satisfação do desejo egoísta de um eros superficial que valoriza o ser amado por aquilo que ele oferece àquele que ama, mas é, ao contrário, um vínculo com o ser amado que leva aquele que ama em direção ao ser amado como um bem independente. Aquele que ama busca “dar à luz em beleza”, seja a crianças ou a ideias e virtudes.[16] O amor abre-se ao eterno ao estender o amor dos pais aos seus filhos ou ao construir virtude e amor a partir daquilo que é transcendente naquele que ama. Rowling dá exemplo de ambos os casos. Por amor, Tiago e Lílian sacrificam-se, de forma voluntária, um pelo outro e por Harry. O amor romântico de Snape por Lílian, embora não correspondido, de fato “traz à 1uz”, de maneira gradual a virtude em Snape. Depois que Snape se compromete a combater Voldemort, o egoísmo anterior, por fim, desvanece.

Refletindo sobre o refinamento do amor romântico no contexto na tradição cristã, o Papa Bento XVI comenta que “o amor visa à eternidade. Sim, o amor é êxtase, não no sentido de um instante de inebriamento, mas como caminho, como êxodo permanente do eu fechado em si mesmo para a sua libertação no dom de si.”[17] O amor de Snape por Lílian o impulsiona para além do desejo egoísta e o transforma de maneira fundamental. O amor de Snape por Lílian, que continua mesmo após a morte dela, encoraja-o a escolher atitudes que, de maneira gradual tornam o amor dele mais parecido com o dela, voltado ao bem dos outros e capaz de autossacrifício. Seu amor por Lílian o 1eva a se colocar, como Tiago e Lílian, entre Voldemort e Harry.

Um Trabalho em Andamento

A decisão de Snape de combater Voldemort e proteger Harry permanece firme, mas seu caráter não muda de maneira instantânea. Aqui, podemos ver o dano do Vício e o trabalho da Virtude: ambos são hábitos, construídos ao longo do tempo. A mudança dos sentimentos e do comportamento de alguém requer vigilância e esforço. Exigindo que Dumbledore mantenha seu papel em segredo, Snape ainda se enfurece com seus atormentadores diários na escola, vendo em Harry toda a arrogância de Tiago e divertindo-se com seus fracassos e punições.[18] A semelhança física de Harry com Tiago deixa Snape cego aos traços de caráter compartilhados por Harry e sua mãe. Os padrões emocionais e de comportamento de Snape continuam a bloquear amizades, mas ao menos suas ações o unem à causa daqueles que combatem Voldemort.

Snape também continua a compartilhar, de modo parcial, a juízo falso de Voldemort de que aqueles que guiam suas ações pelo amor são fracos. Snape cospe esse insulto a Harry durante as aulas de Oclumência. Harry é fraco porque não consegue esconder seus pensamentos e sentimentos de amor. Da mesma forma, quando Snape encontra o Patrono modificado de Ninfadora Tonks, ele escarnece: “Eu acho que você estava melhor com o anterior... O novo parece fraco”.[19]72 Em situações raras, “um grande choque... [ou] uma comoção emocional” pode modificar um Patrono.[20] Tonks apaixonou-se por Remo Lupin (um 1obisomem) e seu Patrono é agora um 1obo. É possível presumir que o lobo em si não “parece fraco”. Em vez disso, a mudança é evidência de seu amor, ou, de maneira alternativa, evidência de que o amor a transformou. É esse amor - em particular pelo desprezado Lupin – que Snape acha fraco. Mas o próprio patrono de Snape, uma corça, oferece testemunho eloquente contra sua assertiva. O amor de Snape por Lílian alterou o Patrono daquele para se corresponder e harmonizar ao desta. Sua defesa mais forte contra ameaças mágicas é agora um emblema de sua amada e sua transformação pelo amor - apesar da habilidade de Snape em bloquear suas emoções e lembranças.

O Patrono de Snape demonstra a noção de Aristóteles do ser amado enquanto um segundo eu; é tanto uma extensão mágica de si mesmo quanto uma manifestação de seu amor por Lílian. Da mesma forma, Harry é protegido pelo amor de seus pais: seu Patrono é o cervo de Tiago, e o amor, a ponto do autossacrifício, de Lílian transforma-se literalmente em parte de seu corpo, protegendo-o de Voldemort. Em contraste, Voldemort protege-se criando Horcruxes. Por amor, confia-se parte da própria alma ao outro, desta maneira um amigo compartilha as alegrias e tristezas do outro e age pelo bem deste, mesmo quando o sacrifício é exigido. A amizade fortalece a integridade da almaz: amigos tornam-se pessoas melhores agindo pelo bem dos outros e construindo virtude. Em suma, amar nos faz humanos de uma forma mais completa. Mas Voldemort confia sua alma a objetos que não podem compartilhar suas alegrias e tristezas ou exigir qualquer coisa dele. Com as Horcruxes, Voldcmort tem oito “eus”, mas cada divisão de sua alma o torna menos humano.

Snape consegue agir com coragem, não em razão de suas crenças e emoções anteriores terem sido expurgadas no todo, mas porque ele escolhe, de maneira deliberada, agir em conformidade com o amor – no sentido de fazer o que é melhor para os outros. Neste ponto, a coragem de Harry e a de Snape são semelhantes porque, para cada um deles, um ato de vontade é exigido para renunciar ao que se quer e escolher o autossacrifício de forma consciente. Harry mostra que o amor conquista a morte por meio do livre autossacrifício. Antes de reagir apenas (mesmo que de forma virtuosa), Harry escolhe de modo consciente. Harry observa como teria sido mais fácil uma morte escolhida no momento, como se jogar na frente de uma maldição, como seus pais fizeram.[21]

De forma semelhante, Snape não fez seu sacrifício pelo bem em um único ato dramático.[22] Ele optou, de modo consciente, e por anos, pela perigosa atividade de conciliar a proteção de Harry com o disfarce de comensal da Morte. Essa tarefa é ainda mais difícil (e um ato claro de vontade), porque Snape age principalmente pelo amor a Lílian, não a Harry. Ele quer o bem de Harry por amor à mãe, mas, apesar disso ele age para proteger Harry.

Por fim, o amor é a chave para a redenção de Snape porque permite que ele sinta remorso, um sentimento que ele compartilha com Harry, mas não com Voldemort. Atos de maldade danificam a alma, mas o remorso pode começar a emendá-la, curá-la e torná-la inteira. O remorso de Snape não erradica, por si só, anos de ressentimento; a diferença é que ele não permite que a raiva e o ódio coordenem suas ações. Apesar desses sentimentos, ele consegue escolher agir pelo bem. Tais atos são um testemunho tanto de seu amor por Lílian quanto da materialidade da sua redenção. O amor e o remorso de Snape não são principalmente evidentes em seus estados emocionais, mas o são em seus atos de vontade contínuos no sentido de buscar o bem do outro.

Harry demonstra remorso ao perdoar Snape, purificando-se da mesma forma. Ao longo da série, Snape e Harry travam uma batalha particular marcada por suspeitas cautelosas e ódio sincero. Após a morte de Sirius, Harry culpa Snape por instigar Sirius a entrar de pronto na batalha no Ministério: “Snape tinha se colocado eterna e irrevogavelmente além da possibilidade de ser perdoado por Harry devido a sua atitude em relação a Sirius”.[23] Nas cenas finais de As Relíquias da Morte, no entanto, vemos que Harry perdoou Snape. Anos mais tarde, Harry conta ao seu filho do meio: “Alvo Severo... seu nome foi inspirado em dois diretores de Hogwarts. Um deles era da Sonserina e foi provavelmente o homem mais corajoso que já conheci”.[24] Harry e Gina deram aos seus filhos os nomes de pessoas que combateram Voldemort e escolheram sacrificar seu próprio bem pelo bem dos outros - Tiago, Lílian, Dumbledore e Snape.

O amor não transforma de maneira fácil ou imediata. Mas o que vemos em Severo Snape é que o amor pode transformar uma vida de forma radical. Snape não fica com a garota, mas seu amor profundo por Lílian muda suas crenças e ações. Esse amor motiva-o a perseverar em seu papel perigoso e solitário de agente duplo. Por causa do amor, Snape é capaz de sacrificar-se a si mesmo, como Lílian - e Harry.




[1] A Ordem da Fênix, p. 833.
[2] O Enigma do Príncipe, p. 615.
[3] Ibid, 616.
[4] Também é possível, é claro, que Dumbledore tivesse uma prova “inabalável” da lealdade de Snape por meio da Legilimência (talvez com o consentimento de Snape.)
[5] Aristóteles, por exemplo, dedica cerca de um quinto de Ética a Nicômaco, seu grande trabalho sobre a felicidade e satisfação humanas, ao tópico da amizade.
[6] As Relíquias da Morte, p. 697.
[7] Afirma Aristóteles: “Aqueles que desejam o bem de seus amigos apenas pelo bem deles ou amor a eles são os amigos mais verdadeiros, porque cada um ama o outro pelo que ele é, e não por qualquer qualidade incidental”, Ética a Nicômaco, 1156b10. Tomás de Aquino cita Aristóteles de maneira explícita quando afirma que “amar é querer o bem do outro”, Suma Teológica, HI, 26, 4ad. No mesmo sentido, o mais atual M. Scott Peck define amor como “a Vontade de estender o próprio eu com a finalidade de nutrir o próprio crescimento espiritual do outro”. Veja M. Scott Peck, The Road Less Taken: A New Psychology of Love, Traditional Values and Spiritual Growth (Nova York: Simon & Schuster, 1978), p. 81.
[8] É claro, nem todas as ações de Snape são boas, analisadas tanto por um critério interno quanto externo. De um ponto de vista externo, o assassinato de Dumbledore cometido por Snape não é objetivamente bom, mas dentro da lógica dos livros, parece ser apresentado como bom em ao menos algum sentido, ou no mínimo admissíve1. Além disso, as contínuas ações hostis de Snape com relação a Sirius não são, a toda evidência, boas, e nem o são suas atitudes hostis com relação aos alunos (bullying). Mas o argumento não é que Snape tenha se tornado bom por meio do amor, mas que, de maneira gera1, Snape enfim age pelo bem dos outros.
[9] A Ordem da Fênix, p. 530.
[10] Ibid, p. 531.
[11] Ibid, p. 536
[12] Ibid, p. 536.
[13] Ibid, p. 677.
[14] Aristóteles, Ética a Nicômaco, 1166a31.
[15] Symposium (O Banquete), 2o6a, traduzido para o inglês por Alexander Nehamas o Paul Woodruff, em Plato: Complete Works, editado por John M. Cooper (Indianápolis: Hackett, 1997).
[16] O Banquete, 2o6b. Veja também 2o86 e os parágrafos seguintes. Os aspectos gerais sobre a natureza do amor, citados anteriormente, encaixam-se bem ao retrato de amor nos livros de Potter. O amor materno de Lílian Potter é o exemplo central de amor na série. Note, também, que o duelo de Molly Weasley com Belatriz Lestrange, no qual ela luta de forma explícita para proteger seus filhos (e os filhos de outros), recebe destaque especial na batalha final, ficando atrás apenas do duelo de Harry com Voldemort.
[17] Deus Caristas Est, parágrafo 6. Bento continua sua análise cristã do amor, afirmando que esse dom de si oferece tanto “o reencontro de si mesmo, mais ainda para a descoberta de Deus: “Quem procurar salvaguardar a vida, perdê-la-á, e quem a perder, conservá-la-á” (Lc17,33). (ibid.) O sacrifício que Harry faz da própria vida no fim do livro As Relíquias da Morte parece estar fundado neste mesmo princípio.
[18] Resignado, Dumbledore concorda: “Eu nunca revelarei o seu melhor”, As Relíquias da Morte, p. 679.
[19] O Enigma do Príncipe, p. 160.
[20] Ibid, p. 340.
[21] As alusões cristãs, em especial em As Relíquias da Morte, são evidentes; dentre elas, o herói que conquista a morte ao sacrificar sua vida, por sua própria vontade, para salvar os outros; os versos da Escritura nas lápides em Godric’s Hollow; a afirmação de almas imortais e a escolha da Estação de King’s Cross como o destino entre-mundos de Harry.
[22] Apesar de insistir no segredo de seu papel, Snape enfurece-se com a acusação de covardia que Harry lhe dirige, e podemos presumir que isso se deve ao propósito e ao risco contínuo de sua tarefa.
[23] O Enigma do Príncipe, p. 161.
[24] As Relíquias da Morte, p. 758.

STAR WARS E A FILOSOFIA: "QUAL É SEU DESEJO, MEU MESTRE?" - GUERRA NAS ESTRELAS E A LUTA DE HEGEL POR RECONHECIMENTO

Em um dos meus passeios errantes por livrarias, encontrei um livro intrigante: Star Wars e a Filosofia. Achei a proposta muito interessante: uma coletânea de artigos de estudiosos em Filosofia que se debruçaram sobre a saga Guerra nas Estrelas e escreveram artigos explorando elementos significativos da narrativa. O livro é coordenado por William Irving, professor de Filosofia da King's College da Pennsylvania e responsável pela publicação de uma série de livros no campo da "Filosofia e Cultura Popular". Fazem parte dessa coleção livros que abordam narrativas diversas, entre livros filmes e séries de televisão e até explorando o heavy metal:“Metallica e a Filosofia” e “Black Sabbath e a Filosofia”.


"O universo dos filmes de Guerra nas Estrelas é muito complexo, repleto de questões humanas, sociais e políticas que são muito mais profundas do que aparentam ser e influem em nossa galáxia também nos dias de hoje. A fim de discutir aspectos de algumas situações e dos principais personagens da série, Jason T. Eberl, Kevin S. Decker e mais 15 estudiosos de Filosofia, fundamentados em pensadores como Platão, Aristóteles, Heidegger, Hegel, William Clifford e outros, tentam desvendar parte dos grandes mistérios que rondam o filme. Exercemos realmente o livre-arbítrio, ou temos o destino já traçado? O medo é capaz de nos levar ao caminho do mal? A lavagem cerebral é eticamente saudável? Existe uma Força todo-poderosa controlando tudo? Para que serve a guerra? Se máquinas pensassem, estaríamos aqui? O Bem existiria sem o Mal?"

O livro traz, em uma linguagem acessível, dezessete artigos, divididos em quatro partes: 1. Que a Força Esteja Com Você - As Mensagens Filosóficas de Guerra nas Estrelas; 2. Não Tente - Faça Ou não Faça - Ética em Uma Galáxia Muito, Muito Distante; 3. Não Me Chame de Filósofo Descuidado" - Tecnologias Alienígenas e a Metafísica da Força; e 4. Sempre Há Um Peixe Maior - Verdade, Fé e Uma Sociedade Galática.

Como leitora voraz e amante da saga Guerra nas Estrelas, achei a leitura bem instigante. Fiquei animada e já comprei também os que se referem a: O Hobbit, Harry Potter e X-Men. Conforme eu for terminando a leitura de cada um deles, prometo uma postagem. Para dar um gostinho do livro, digitalizei um dos artigos de que mais gostei. Espero que vocês gostem também! 





Guerra nas Estrelas, como o nome sugere, trata de luta e conflito; esperança e renovação; guerra e morte. De um lado, temos os rebeldes, cuja luta para se libertar do domínio e medo imperiais motiva seus defensores e dá vida ao movimento. Do outro lado, existe o Imperador e seus servos que, guiados pelo que o filósofo Friedrich Nietzche (1844-1900) chama de o “desejo de poder”, voluntariamente sacrificam planetas inteiros e sua população em uma tentativa impiedosa de alcançar seus objetivos. A arte de fato imita a vida ou, pelo menos, ressalta uma importante característica dela - ou seja, o exercício de um certo tipo de poder.

Não é difícil entender como nasce esse tipo de poder; o medo é o mecanismo que explica sua existência e força. É o medo de perder a irmã que leva Luke a realizar os desejos do Imperador e atacar seu pai. É o medo que motiva o senado a formar o exército dos clones que, por fim, provoca sua própria queda. E é o medo de perder a mãe que leva o jovem Anakin Skywalker ao caminho para o Lado Negro e faz com que o antigo mestre Jedi, Yoda, recite o mantra de sua religião: “Medo leva à raiva... Raiva leva ao ódio... Ódio leva ao sofrimento.”

O medo ilumina o caminho da escravidão e do sofrimento; o caminho que leva ao Lado Negro. Ao mesmo tempo, no entanto, ele revela um certo modo de exercer o poder - o modo do mestre Sith. O mestre chega a essa posição e mantém seu domínio sobre os aprendizes ou escravos, evocando e jogando com o medo deles, que permanecem nessa condição permitindo que esses medos dominem seu ser. Esse jogo entre poder e medo é o que o filósofo do século XIX Georg Hegel (1770-1831) chamava de “dialética mestre-escravo”. Olhando a saga de Guerra nas Estrelas pela lente da dialética mestre-escravo de Hegel, nós não apenas entenderemos melhor a natureza e os limites do poder do Imperador, mas também por que - além do impulso hollywoodiano de dar um final feliz ao público - o poder fracassou. E, como um bônus, a análise de Hegel nos força a olhar com mais cuidado para o exercício pessoal do poder, trazendo mais alívio aos diferentes personagens da galáxia de Guerra nas Estrelas e suas motivações.

MESTRES E ESCRAVOS: QUEM GOVERNA QUEM?

Certa vez, fizeram a seguinte pergunta a Tales, o primeiro filósofo da tradição ocidental: “Qua1 é a coisa mais difícil?” Ele respondeu: “Conhecer a si mesmo.” Na verdade, Tales acertou o alvo: entender a nós mesmos e o valor e significado de nossas experiências é, na verdade, uma das coisas mais difíceis que podemos fazer. Do mesmo modo, entender como o próprio autoconhecimento é possível, como ele nasce e no que consiste é um dos problemas mais desafiadores enfrentados pelos filósofos. Em Guerra nas Estrelas, dois dos temas mais compelativos são a jornada do autoconhecimento de Luke e a redenção de seu pai como resultado de sua própria descoberta de uma nova identidade, no fim de O Retorno de Jedi.

Por mais improvável que pareça, é o problema do autoconhecimento que acaba por levar Hegel a examinar o relacionamento entre o mestre e o escravo. Para o filósofo, o conhecimento de nós mesmos como indivíduos; o conhecimento do valor e significado de nossos projetos e experiências, necessariamente implica o relacionamento com outras pessoas. Nosso autoentendimento não nasce independentemente dos outros; pelo contrário, ele emerge do contexto do relacionamento com outras pessoas. O reconhecimento (ou falta dele), por parte dos outros, de termos projetos e experiências valiosos e independentes, amolda a maneira como percebemos a nós mesmos. Não é de surpreender, portanto, que o tipo e a qualidade de nosso relacionamento com os outros exerça uma influência direta sobre nossa capacidade de nos conhecer e valorizar a nós mesmos. Alguns relacionamentos podem aumentar nossa capacidade de autoconhecimento, enquanto outros, como o do mestre e do escravo (ou entre o Imperador e seus súditos), distorcem a imagem que temos de nós mesmos. Mas, o que é realmente interessante nisso tudo é o fato de que é o mestre, e não tanto o escravo, que tem o autoentendimento distorcido pelo relacionamento. Vejamos por quê.

Do ponto de vista do autoconhecimento, o indivíduo desenvolve a percepção de si mesmo como indivíduo (ele se torna consciente) quando confronta outra pessoa como ele; alguém capaz de interpretar e entender o mundo.[1] Nesse encontro, um tem a percepção do outro, mas essa percepção traz consigo uma certa tensão. Considerando que o outro é co-intérprete do mundo, ele é um sujeito para quem o mundo se apresenta. Por outro lado, considerando que o mundo é um objeto para ele, o outro também será um objeto dentro do mundo.[2] Quando, por exemplo, Luke e Vader se encontram pela primeira vez em O Império Contra-Ataca, Vader fica dividido. Por um 1ado, ele considera Luke um troféu, um mero objeto de conquista. Por outro lado, ele também vê Luke como um possível rival do Imperador, um igual e um parceiro.

Em ambos os casos, nesse ponto, o indivíduo só tem a percepção de si mesmo dentro de sua capacidade de interpretar e entender o mundo. O que falta a ele é um entendimento de si mesmo como um criador ativo; ou seja, como um ser com projetos e objetivos significativos. Contudo, para se conhecer assim, o indivíduo deve de algum modo formar um mundo de acordo com seu próprio desejo; ele deve, em outras palavras, fazer para si um mundo humano. Nesse momento, e só nesse momento, sua individualidade emergirá e se tornará algo a ser interpretado e entendido pelo outro. O problema é que ser criativo nesse sentido requer que imprimamos nosso desejo aos outros, ordenando nosso mundo. Nesse aspecto, somos todos como O Imperador, tentando refazer o mundo à nossa própria imagem.

A luta começa. Um se recusa a ver o outro como um sujeito co-igual; e um vê no outro um meio de criar o mundo a seu próprio modo. Ambos arriscam tudo na luta de vida e morte pela supremacia, pois é por meio dessa luta que, segundo Hegel conhecemos e valorizamos a vida com todas as suas possibilidades criativas.[3] No fim, um chega à beira do terror e volta atrás, apenas para se tomar escravo do outro. Isso, em termos simples, é como Hegel entende a emergência histórica da relação entre mestres e escravos.

É tentador pensar que nesse ponto o mestre tem o que deseja. Como mestre, pode comandar o trabalho do escravo e fazer do mundo aquilo que quiser. Livre do aborrecimento do trabalho mundano, o mestre pode viver em ricos ambientes, dedicar-se a prazeres fabulosos e fazer tudo o que tem vontade (lembremos de Jabba, o Hutt). Realmente, parece que o mestre tem tudo o que quer, assim como parece que o Imperador, com seus guardas vestidos de vermelho e cortesãos bajuladores, tem o que quer; mas as aparências enganam.

É preciso que seja reconhecido por outro, um igual, que o mestre arriscou tudo para se tornar mestre e não para levar uma vida de prazer. O escravo é um ser humano, mas enquanto continuar escravo não pode dar ao mestre o reconhecimento que ele deseja - o reconhecimento de um igual Por que isso é importante? Hegel assim explica: “A autopercepção existe em si e para si quando, e pelo fato de que, ela existe para o outro; ou seja, ela só existe quando reconhecida.”[4] Embora, com certeza, eu seja algo independente dos outros, o entendimento que tenho de mim mesmo, do valor de meus projetos, do significado e sentido das minhas experiências, depende do modo como os outros me vêem. Naturalmente, eu devo confiar e valorizar os julgamentos dos outros que me avaliam. Se eu os considero diferentes de mim, incapazes de entender ou julgar o valor da minha vida, então as opiniões deles não têm valor para mim. Somente um igual é capaz de me entender do modo que eu me entendo. Assim, se devo obter o reconhecimento que desejo como um ser autoconsciente; se devo entender a verdade sobre mim mesmo e minhas possibilidades como ser humano, então devo buscar um igua1.

Mas isso é impossível para o mestre. Por definição, o mestre “prefere a morte ao reconhecimento servil da superioridade do outro”.[5] E é somente pela morte, sua ou de seu adversário, que o mestre alcança o que deseja - domínio. A possibilidade da coexistência pacífica com co-iguais com outros mestres - é excluída. A luta original (de um lado só) por reconhecimento é meramente transplantada para um novo loca1. Pois, enquanto o mestre se recusa a conhecer o outro como um sujeito co-igual; enquanto ele deseja ser mestre, seus objetivos humanos mais importantes são, e sempre serão, frustrados.

É desnecessário dizer que os objetivos do escravo também são frustrados. Ser um escravo só é uma situação feliz em histórias ruins. Na verdade, a escravatura é uma instituição brutal e desumana, e a breve visão dela que temos em Tatooine, em A Ameaça Fantasma, é branda e disfarçada. Não obstante, a situação para o escravo também não é o que parece à primeira vista.

Para começar, é o trabalho do escravo que cria o mundo das coisas, e por meio desse trabalho ele experimenta a si mesmo como um ser criador. Esse certamente é o caso do jovem Anakin quando trabalha na oficina de Watto. Enquanto o mestre não pode ficar satisfeito consigo mesmo – pois ele só pode escolher uma vida de prazer animal ou voar novamente e morrer no campo de batalha -, o escravo pode superar a si mesmo e à sua situação vencendo os medos. Em O Império Contra-Ataca, a experiência de Luke na caverna e seu subseqüente treinamento Jedi simbolizam a luta e a vitória contra o medo. A princípio, o medo o aprisiona e o impede de agir como um cavaleiro Jedi. Embora alegue que não tem medo, Yoda sabe a verdade e avisa: “Você terá... você terá.” A superação desse medo, por sua vez, constitui uma parte importante do amadurecimento de Luke; durante o duelo na Cidade nas Nuvens, Vader o elogia por vencer o medo. Como conseqüência, é o mestre que representa um beco sem saída histórico. Ele nunca pode ir além do que é e perceber a si mesmo como um sujeito livre e autoconsciente. O escravo, por outro lado, nada tem a perder além do medo; ele pode ir, e irá, além daquilo que é, porque seu desejo não é ser mestre, mas ser 1ivre. Hegel diz que ele encontra a liberdade em seu trabalho; um espaço em que controla seu pequeno e limitado mundo, e reconhece a liberdade de ser “dono da própria mente.”[6]

UM IMPÉRIO DE MEDO E TREMOR

O controle do medo é o negócio do Império; e o medo é a cunhagem do poder que deve se fazer visivelmente terrível para governar. O Imperador, precisamente porque é desigual em relação a seus súditos, não pode exercer o poder todo o tempo. Dentro de um sistema assim, é o excepcionaL o exemplo, que deve circular e demonstrar poder. A decisão de destruir o planeta Alderaan, por exemplo, foi tomada não porque ele representava uma ameaça, mas porque sua visibilidade o tornou um útil espetáculo de força. “Dantooine”, o Grande Moff Tarkin anuncia, “está muito longe para fazer uma demonstração eficiente.” É verdade, o exercício do poder é excessivo, mas não é indiscriminado - seu uso é calculado para maximizar o medo e tornar desnecessário o real emprego da força em outro 1ugar: “O medo manterá os sistemas locais na linha, o medo desta estação de batalha.”

Como todas as armas de destruição em massa, a função militar da Estrela da Morte não pode ser separada com facilidade das suas funções políticas e policiais - seu propósito como um método de controle doméstico. O poder objetivo dela não está no uso rea1, mas na ameaça dele, e aqui está o segredo de sua função política de justificativa do exercício do poder. “Esta estação”, diz um comandante muito zeloso, “é agora o poder supremo no Universo. Eu sugiro que nós o usemos.” A sugestão pode ser ignorada, mas não a implicação. Por sua simples existência, a Estrela da Morte convida ao uso e, ao que parece, justifica a extensão do poder imperial a todos os cantos da galáxia. O poder de destruir um planeta é o poder de tomar obedientes populações inteiras. Quando manejada pelo mestre, ela mostra quem são os inimigos dele e, ao fazer isso, explica e justifica o poder do mestre revelando sua força.

A Estrela da Morte é a mais espetacular exibição de poder que não tem medo de ser visto como terrível; mas não é a única exibição desse poder nem o único meio pelo qual o poder se faz sentir. O controle do Imperador sobre indivíduos, diferentemente daquele exercido sobre populações inteiras, deve ser administrado com um grau de flexibilidade que corresponda ao interesse que ele tem em extrair cada vez mais trabalho útil deles. Para tomar esses indivíduos úteis e cooperativos, o Imperador pode substituir o medo especifico de uma ameaça bem definida como a Estrela da Morte pelo terror mais constante do desconhecido. “O Imperador está vindo aqui?”, um surpreso comandante pergunta no início de O Retorno de Jedi. “Sim”, responde Vader, “e ele está muito insatisfeito com sua aparente falta de progresso.” A ameaça é indefinida e plantada na imaginação do comandante. Quase sem hesitação, ele responde: “Dobraremos nossos esforços!” Então, uma segunda ameaça mal definida é lançada no ar: “Espero que sim, comandante, para seu próprio bem. O Imperador não é tão misericordioso quanto eu.” A “misericórdia” de Vader é lendária, afinal de contas.

Em outros casos, a ameaça é definida, mas seu significado é deixado incerto. No confronto com O Imperador, O medo de Luke de Ver a rebelião fracassar, de se tornar como o pai e de ver sua irmã entregue ao Lado Negro se torna real. Mas o que significaria ser como seu pai? O fim da rebelião significa o fim de todas as rebeliões? O que isso realmente significa? Se a frota rebelde for destruída, seus amigos serão necessariamente mortos? O Imperador pode encontrar Leia e, se isso acontecer, o que significaria entregá-la ao Lado Negro? Em nenhum caso Luke é confrontado com um sinal específico e implacável do que está para acontecendo. Em vez disso, uma teia de medo é lançada pelo escárnio do Imperador para provocar a raiva de Luke e incitar aquele poder totalmente humano para superar a razão e ceder ao ódio.

Se o mecanismo do medo explica como o Imperador exerce seu governo e se relaciona com os súditos, é o ódio que explica o relacionamento dele com os conselheiros e seguidores mais próximos - Darth Mau1; o Conde Dooku; e, de modo mais especia1, Darth Vader. Em vez de igualdade ou reconhecimento, é o ódio que os une, porque esse sentimento é o meio principal pelo qual cada um percebe a si mesmo e o mundo. Cada um deles é guiado por seu próprio ódio pela vida e (provavelmente) por si mesmo. Não é de surpreender que cada um veja no outro um reflexo de si mesmo: algo para ressentir e odiar talvez, mas também algo inteligível e compreensível; um tipo de área comum.

Vimos anteriormente que o mestre busca iguais com quem possa se relacionar como um ser autoconsciente. Se Hegel estiver certo e o mestre nunca for capaz de se satisfazer consigo e com a vida, então não devemos ficar surpresos com o fato de o Imperador odiar a vida e a si mesmo. Em outras palavras, é sensato pensar que o ódio se tornará o meio principal pelo qual o mestre entende sua experiência do mundo e de si mesmo. Como conseqüência, esse mesmo ódio se constituirá no único meio pelo qual o mestre se relaciona com os outros como seres autoconscientes; ou seja, como iguais relativos. É claro que esses relacionamentos serão seriamente empobrecidos e deficientes, como de fato o são. Mesmo assim, como eles são formados ao redor do principal foco pelo qual cada um entende a si mesmo (nesse caso o ódio), essas relações serão mais pessoais, mais fortes e mais duradouras do que qualquer outra que cada um deles possa ter. Mais do que qualquer outra coisa, isso explica o poder do Imperador sobre seus seguidores e as respectivas alianças com ele. Como Vader confidencia a Luke, “eu devo obedecer a meu mestre.”

Vemos isso com mais clareza se pensarmos com cuidado na evolução de Darth Vader e sua traição final ao Imperador. Vader começa, em Uma Nova Esperança, como uma incorporação negra de todo o mal. No seu primeiro ato cinemático, ele quebra o pescoço de um homem enquanto o interroga acerca da localização de alguns planos roubados. Daí em diante, as coisas ficam piores: com a compreensão tardia dos filmes mais recentes, vemos que ele permite a morte dos membros da família de seu padrasto, Owen e Beru Lars; interroga e tortura a própria filha; mata seu antigo amigo e mentor, Obi-Wan; e quase mata seu filho na trincheira da Estrela da Morte. Em O Império Contra-Ataca, Vader não faz nada melhor – em uma série de eventos ele simplesmente mata os subordinados que falham com ele, em uma forma idealizada de reestruturação corporativa. E assim, quando chegamos ao último episódio da saga, O Retorno de Jedi, e descobrimos quem são os pais de Luke, não vemos praticamente nenhuma razão para pensar que Luke não esteja iludido em acreditar que “ainda existe algo de bom nele”. Pelo contrário, a suposta luta que Luke sente no pai está enterrada tão profundamente que, até o momento em que Luke está prostrado diante de um Imperador assassino, não temos nenhuma indicação de que Vader seja algo mais do que um servo voluntário do mal. E então, e somente nesse momento, Vader age para salvar o filho.

Por que ele faz isso? Ou melhor, como Vader supera o controle que o Imperador tem sobre ele?

Só existe uma resposta possível: Vader vence o Imperador porque supera seu próprio ódio e alcança uma nova autoconsciência. Confrontado com a inabalável fé de Luke em sua bondade, Vader percebe a verdade sobre si mesmo - ele não é um joguete do mal, mas um homem de bondade e nobreza inerentes. Vader se volta contra o Imperador quando se torna consciente de si mesmo como algo mais além de um homem cheio de ódio; algo mais do que um escravo. E essa percepção nasce no momento exato em que Vader fica face a face com a possibilidade de assistir à morte da única pessoa que viu algo de bom nele - seu filho Luke.

A luta pessoal de Luke e Vader com seus próprios medos está no cerne da história mais completa acerca da luta e conflito entre os Rebeldes e o Império. A resolução dessa luta pessoal representa o momento da autodescoberta para os dois personagens; um momento em que eles entendem, em razão da relação mútua, quem de fato são. E a mesma coisa pode ser dita acerca das lutas maiores que acontecem na saga. Os Ewoks, por exemplo, provam quem e o que são em seu confronto com o Império. Do mesmo modo, os Naboo e as Federações do Comércio revelam algo de si mesmos na resposta dada ao colapso da república e à ascensão dos Sith. Ao que parece, era isso que Hegel tentava nos dizer: no relacionamento entre mestres e escravos, é o escravo, e não o mestre, quem está em posição de revelar algo acerca de  nossas possibilidades como seres humanos. O medo pode criar e sustentar relações não iguais; mas, no fim, o desejo de saber quem e o que somos triunfará.





[1] G.W.F. Hegel. Fenomenologia do Espírito.
[2] Ib.
[3] Ib.
[4] Ib.
[5] Hegel’s Dialetic of Desire and Recognition: Texts and Commentaries, editado por John O’Neil (New York: State University of New York Press, 1966), p. 55.
[6] Hegel. Fenomenologia do Espírito.