quarta-feira, 27 de novembro de 2013

PASSOS NA AREIA II

Praia do Pepê por Stella Montalvão

Gaivotas voam sob o mar. Pombos caminham pela praia, catando detritos. Sei que faço parte disso. Penso nos animais, na sua existência tão diversa da nossa. Penso na nossa interdependência, nos nossos caminhos entrelaçados.

Lembro-me dos beagles. Lembro-me dos ratinhos de laboratório. 

Vidas de que dispomos em prol dos nossos interesses.

Temos esse direito?

Acredito que até a mais empedernida narcisista, às voltas com seus produtos de beleza, sabe, no fundo, como é perverso o uso de animais para testar cosméticos. Mesmo que nos recusemos a reconhecer como somos arrogantes, a percepção de que é preciso proibir esse tipo de prática fica cada vez mais forte.

No entanto, quando se fala de medicamentos, a dúvida se instala. Será?

Eu acredito que vivemos uma contradição profunda. Gastamos tempo e dinheiro para criarmos medicamentos para tratar doenças que nós mesmos criamos.

Fumamos, bebemos, ingerimos uma infinidade de produtos químicos cuja finalidade é despertar nossas sensações: aromatizantes, corantes e outros venenos. Usamos pesticidas, e, em escala global, somos responsáveis pelo envenenamento dos rios, pelo aquecimento global e outras mazelas.

Temos realmente o direito de impor às outras espécies as experiências e testes para criar remédios para problemas que atraímos com nosso estilo de vida?

Já não basta criarmos, em escala industrial, e frequentemente de forma cruel, animais para nos alimentar e alimentar uma indústria nada confiável em que hormônios, medicamentos, produtos químicos diversos são adicionados ao que ingerimos? Se ainda comemos carne, não deveríamos pelo menos manter uma postura respeitosa diante desse outro?

No plano simbólico, é também disso que nos fala a expulsão do Jardim do Éden: da nossa incapacidade para nos sentirmos em comunhão com o todo, com a natureza, com outros seres vivos.


Penso que, se como indivíduos, não somos capazes de vivermos em paz com os outros seres vivos, pelo menos deveríamos encarar a responsabilidade do que fazemos com eles, por conta do nosso egocentrismo.



PASSOS NA AREIA


Praia do Pepê por Stella Montalvão


Vejo crianças brincando na areia, fazendo castelos ou dando gritinhos de prazer ao entrar na água gelada. Vejo corpos jovens como já foi o meu, e corpos envelhecidos como será o meu um dia. Vejo pássaros e homens-pássaros com seus parapentes deslizando na água.

Caminho pela praia e o sol aquece meu rosto. O céu azul sem nuvens encontra-se com o mar também azul. Sinto meus pés na areia molhada e a brisa marinha refresca.

Enquanto sinto a presença da natureza, viajo dentro de mim, consciente do meu corpo como parte desse cenário.
Meu corpo. A materialização que me comporta em espírito fragmentado.

Meu corpo em excesso. Construído para ser presença, é hoje a representação da minha necessidade de me proteger do meu próprio medo.

Sigo colocando meu prazer naquilo que como. Desloco a alegria para fora da minha experiência interna. Comendo, exercito um prazer solitário, censurado e, por isso, tentador. Nesse processo, construo minha cápsula de proteção que me mantém distante dos outros.

Assim, sou também pássaro, que arrepia suas penas para iludir o inimigo, criando a ilusão de ser forte, aparentando ser maior do que sou diante da ameaça de me descobrir frágil.

É minha capacidade de amar que me assusta. Dar-se a conhecer é o perigo. E é nessa capa de excessos que me escondo, cada vez mais densa.

Mas quem sou eu verdadeiramente?

Caminhando na praia, sinto que sou leve.

Meu corpo desajustado serve ao meu pequeno ego assustado e perdido, que vive hoje com medo de sua própria sensibilidade, quando deveria brilhar, flutuar, deslizar pelos caminhos por onde passo.

Sei que posso me alimentar de luz, de sol, de paz.
Sei que posso me alimentar dessa sensação poderosa de ser quem eu sou.
Sei que posso amar.


Sei que posso brilhar!